Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

Professora, 'sabãozinho' engravida?

A gente sai da Universidade tendo certeza que não sabe nada. Por isso o 'pavor' ao entrar numa sala de aula.
Como mobilizar tudo o que aprendemos de forma efetiva, que ajude o aluno a entender?
A disciplina "Prática de Ensino" deveria ter ajudado, mas só dei 3 aulas... Tudo correndo, improvisado. A UFS passou por uma greve e quando retornamos às aulas, as escolas estavam terminando o ano letivo. Foi uma loucura. Um estágio de 3 aulas. Mas era o possível.
Só que agora, eu estava em sala de aula. E precisava dar conta do meu trabalho. Preparei as aulas, descobri que na escola existia um laboratório (na realidade 3 laboratórios). Tínhamos lupas (não as manuais, mas aqueles da Universidade), microscópios (e bons!)... Pensei que podia diversificar as aulas.
Realmente, as aulas eram diversificadas. Usei jogos, brincadeiras, tudo o que minha imaginação sugeriu e eu consegui fazer.
Mas nem sempre é possível fazer uma aula diferente. Então mesclava aulas teóricas com as que tinham jogos, vídeos (é já existia TV escola!), ou outra atividade diferente. Nesse dia, era momento de aula teórica. Fui para uma turma de 7ª série e falei de sistema reprodutor. Tudo bonitinho, do jeito que aprendi na UFS. Só não sabia que Sistema Reprodutor era apenas o primeiro passo para uma longa caminhada. Cheia de percalços, mas muito prazerosa.
Quando termino de falar dos Sistemas Reprodutores (masculino e feminino) pergunto se meus abençoados alun@s (a essa altura do campeonato já sabia o nome de todos os 'anjos') se tinham alguma dúvida. Não sei pq eles entenderam que podiam perguntar qq coisa sobre sexualidade. Foi uma 'saraivada' de perguntas. Fiquei tontinha... Algumas delas ainda me lembro:
"A mulher sente dor na primeira vez?"
"Dá para saber se uma menina já transou?"
"Se o menino se masturbar muito fica doente?"
"Se depois da relação sexual a menina lavar a vagina (olha, eles disseram o nome científico!) pode engravidar?"
"Se um menino gozar na piscina e a menina tiver perto, ela pode engravidar?" (esses meninos são criativos...)
E aquela pergunta que me mostrou o quanto eles confiavam em mim: "Professora, 'sabãozinho' engravida?"
Deus é mais!! De onde eles tiram tantas perguntas? Eu não sabia responder metade delas.
E essa última eu nem entendi... Pedi calma fui respondendo o que deu e perguntei "O que é 'sabãozinho'?" Risos nervosos, um 'deixa pra lá', e eu insisti. Disse que poderia conhecer com outro nome, insisti e um corajoso disse: "é quando o menino goza nas pernas da menina." Ah, isso eu sabia. Disse que possibilidade sempre existe, depende de quanto ficou perto da vagina. Ouve um comentário, um burburinho e a aula terminou.
Pq ninguém diz para a gente, na Universidade, que os alunos querem saber disso? Eu não estava preparada. Fiquei pensando que provavelmente essa reação dos alunos deveria ser pq em casa não havia abertura para falar. Então resolvi que se eles tinham interesse eu ia procurar aprender e tentaria conversar com eles sobre o que pedissem. Já sabia que teria muitas dúvidas... Mas já pensei em perguntar tudinho ao meu ginecologista... Eu e minha mania de botar todo mundo na roda...
Pesquisei, descobri um material interessante do ECOS (chegava de graça um boletim para mim) Convenci a direção da necessidade de reproduzir alguns textos, e fui levando.
Hj sei que errei muito, quis dizer aos alunos e alunas como deveriam viver sua sexualidade. Não entendi naquele momento que eles precisavam construir seus valores, sua forma de vivenciar a sexualidade. Que a mim cabia apenas mostrar as possibilidades, lembrando que cada uma delas traria consigo determinadas responsabilidades.
Mas eu falava de sexualidade tentando mostrar os perigos de uma gravidez na adolescência, que era melhor se prevenir (e a AIDS tava matando que era uma gracinha). Para mim, as meninas casavam cedo por que engravidavam. Acreditava que se as meninas não engravidassem, não iriam querer casar. Mania de pensar as coisas sob a minha ótica. Diria Montesquieu, um filósofo francês, que "vemos as coisas por uma secreta projeção de nós mesmos". É verdade, e minha lente, tão distorcida e focada na minha forma de ver o mundo não concebia outra 'verdade'.
Aí aparece uma aluna que 'coloca em xeque' minha forma de pensar. Tinha 14 anos, muito inteligente, uma das melhores alunas da sala, e estava casada a 2 anos. Não tinha filhos, ela casou pq gostava do marido, só teve relações com ele depois de casada.
E queria filhos... Me perguntou o que fazer ´para ter filhos. Mesmo achando ela nova, disse que procurasse um ginecologista. Que ele poderia orientar melhor que eu.
Eu achava a menina uma coisa de outro mundo, tão nova, casada. E querendo ser mãe. Pedi que ela terminasse pelo menos o ensino fundamental antes de engravidar. Ela concordou. Anos depois encontrei com essa aluna. Tinha separado do marido, logo depois que teve uma filha com ele. Mas estava feliz com a filha.
Minha forma de entender o mundo não concebia uma menina como ela. Mas nunca procurei saber pq ela casou cedo. Só estranhei...
Com o tempo, passei a ficar mais solta em sala. Se no início 'morria de vergonha', agora conseguia conversar com meus alunos despida de muitas 'frescuras'. Comecei a pedir que alunos e alunas escrevessem suas dúvidas em papéis e me entregassem. Que eu iria respondendo um pouco em cada aula. Fiz assim. E o que não sabia perguntava a outras pessoas, e depois levava a informação para a sala de aula.
Mas a quase 20 anos atrás alguns pais não achavam correto que a professora falasse de certas coisas (sem-vergonhice, nas palavras de alguns) com seus filhos e filhas. Principalmente as meninas. Elas eram puras, não podiam ouvir determinadas coisas. Justificava mostrando que era conteúdo da série delas, que não estava inventando. Nem sempre funcionava. Já tive aluna que foi proibida de frequentar minhas aulas. Ficou um mês sem aparecer. O pai veio me comunicar que a filha dele não ia assistir minhas aulas. Que entendia que era minha obrigação dar o conteúdo, mas que ele não concordava, por isso ela sairia. Eu disse que não podia fazer nada.
Mas depois do que ouvi de uma professora semana passada, acho que o que aconteceu comigo foi pouco. Uma professora me contou que uma mãe disse a ela que preferia ter a filha grávida que deixar ela saber sobre camisinha. A gente vê cada coisa...
Bom, mas e os alunos que freqüentavam as aulas? Eu devia fazer o que com eles? Me perguntei algumas vezes se não estava fazendo mais que minha obrigação (naquele momento achava que deveria falar só de sistema reprodutor, o resto era fruto das perguntas dos alunos e alunas).
Porém, tinha uma certeza: devia dar minhas aulas da melhor forma possível. Tinha a esperança que minhas alunas aprendessem um pouco e repassassem as informações.
Pensei que conversar sobre sexualidade com os alunos e alunas seria suficiente. Que bastaria deixar eles e elas perguntarem que eu poderia orientá-los , mas ser a professora que fala desse tema deixa os alunos e alunas abertos para te contarem cada coisa...
Uma delas foi qdo determinada aluna me disse que a menstruação estava atrasada. Perguntei se a criatura havia conversado com o namorado. A resposta da menina: "Como vou falar isso para ele, professora, tenho vergonha." Minha resposta, nada convencional: "Tem vergonha de abrir a boca, mas não teve de abrir as pernas." Hj percebo como essa frase é preconceituosa. Mas não nego cada idiotice que falei nessa vida. A gente aprende com os erros, como diria minha mãe.
Voltando a aluna que acreditava estar grávida. Depois da minha fala nada educada, ela ficou me olhando assustada. Depois conversei com calma. Expliquei que para ter certeza precisava fazer o teste de gravidez. Essa pelo menos não estava grávida. Descobriu depois.
Me deixava irritada essa mania das meninas transarem sem camisinha. Nunca cogitei em perguntar pq elas faziam isso. Talvez descobrisse que elas não tinham facilidade de acesso ao preservativo. Muitos anos depois, qdo comecei a questionar isso em sala, as respostas foram simples: pq se elas entrassem no Posto de saúde, todo o bairro (inclusive os pais) saberiam. E lógico que os pais não sabiam que as filhas eram sexualmente ativas... Comprar camisinha estava fora de cogitação. Os meninos tbém não gostavam de usar preservativo (medo de brochar).
Além de tudo isso, o Posto nem sempre tem preservativos. E às vezes mesmo tendo, nega a alunos adolescentes. Um aluno meu, de 14 anos foi ao Posto. Lá, a atendente disse o seguinte"meu filho, vc é muito novinho para essas coisas, vá brincar." Deu um sermão e o aluno chegou para mim furioso: "Professora, nunca mais me diga para pegar preservativo lá. Não vou!" Eu ia dizer o que?
Outra aluna veio me contar que teve sua primeira relação sexual na rede da casa do namorado. E me disse que 'teve gosto de areia'. Nunca entendi o que isso queria dizer. Talvez que foi sem graça. Provavelmente foi uma coisa rápida e ela nem conseguiu entender direito o que foi.
Engraçado é que até hj meus alunos e alunas perguntam praticamente as mesmas coisas. Hj uma menina me perguntou a diferença entre masturbar e gozar. Já me perguntaram pq homem não menstrua. E uma que demorei a entender: "Professora, se a menina fizer xixi depois da relação sexual ela pode engravidar?" Não entendi a lógica da pergunta na hora, e respondi que poderia. Eu não via relação entre o 'fazer xixi' e o ato sexual. Depois de uns dias é que a 'ficha caiu': o menino que me fez a pergunta não sabia que mulheres tem relação sexual por um orifício diferente do que sai a urina. Ele fez uma analogia com o que ele conhecia: o corpo masculino.
Assim que entendi, expliquei na sala que o corpo masculino é diferente do feminino. Que a mulher faz xixi por um orifício (uretra) que está perto de outro orifício, a vagina. Que é pela vagina que sai a menstruação, o bebê na hora do parto e por onde entra o pênis na relação sexual vaginal.
Percebi que eles e elas entenderam (eu mostrei tudo no atlas). Comentando com colegas sobre a confusão do menino (achar que ao fazer xixi a menina eliminaria o esperma), uma amiga me disse que com ela aconteceu pior. A comadre dela, que morava no interior do estado, disse que ela tinha só "dois buracos: um para fazer xixi, namorar e por onde descia a menstruação, e outro para fazer cocô". Minha amiga disse que tentou explicar a essa comadre que os orifícios eram diferentes, que era só ela pegar um espelhinho e olhar. Mas a comadre dela, irredutível, disse: "olha comadre, as mulheres de Aracaju então são 'tudo' aleijada, pq as daqui só tem dois buracos." E fim... Discutir como?

Trabalho, muito trabalho...

Estava olhando umas fotos antigas, de 1991.
A primeira Feira de Ciências que organizei. Tive ajuda, e muita. Jacinta, Jenolita e Fátima, minhas colegas de Ciências, Madalena e Gilson de História, se empenharam muito para que essa Feira fosse interessante. E foi.
Três turnos participando, durante três dias. Tínhamos atividades pela manhã, tarde e noite. A gente não tinha juízo... E noss@s alunos e alunas adoravam.
Nas fotos estão os alunos e alunas da 8ª série (me permitam não usar 9º ano), que encenaram uma 'peça' que usava os moldes da 'escolinha do Professor Raimundo'. Eles escreveram e encenaram. As apresentação foram nos 3 turnos. Época boa. Era cansativo, mas nesses momentos os alunos mostravam todo o potencial.
Como em uma Gincana Ecológica que fizemos. Uma das atividades era apresentar (em forma de encenação, jogral, coral, ...) uma música com teor ecológico. Uma turma me surpreendeu. Na realidade surpreendeu a tod@s.
Eles iniciaram com uma encenação da música "Xote Ecológico". Na realidade foi uma introdução à música. A ideia era interessante: mostrava Luiz Gonzaga e Chico Mendes rapazes sonhadores. Luiz vai para o sul, tentar a sorte como cantador, e deixa Chico Mendes, brigando pelo ambiente. Passam-se 20 anos, e Luiz Gonzaga volta (com os cabelos brancos de pó de giz). Pergunta a um rapaz que ele encontra, onde pode encontrar Chico Mendes. A resposta do rapaz é que Chico Mendes foi morto, por que procurava defender o ambiente. Aí, Luiz profundamente tocado pela morte do amigo, começa a música, e é seguido por todos os integrantes da turma, que fazem coro com ele.
Foi lindo.
Até hoje não sei quantas Feiras de Ciências, Semana do Meio Ambiente, Gincana Ecológica,... realizamos nessa escola. Ela foi a grande escola para mim. Lá aprendi o valor de um grupo coeso, no qual todos trabalham em prol de um só objetivo. Novinha, acreditava que em todas as escolas deveria ser assim.. Ledo engano.

O primeiro dia

Como é o primeiro dia de uma professorinha?

Eu pensava que ia chegar na escola, me apresentar, saber quais as turmas e ter tempo de preparar as aulas.

Isso EU pensava. Mas não foi bem assim que tudo aconteceu.

Lembro como hoje: cheguei na escola no dia 28 de novembro de 1990. Era o horário do recreio (à tarde). A diretora estava cheia de coisas para resolver e, assim que me recebeu, foi logo disparando: "Os alunos não tiveram uma aula de Ciências esse ano. Você vai ter que dar 180 horas aula." Caí sentada na cadeira, provavelmente de boca aberta. Como dar 180 horas/aula se o ano estava terminando?

Mal sabia eu que começava minha carreira conhecendo um fator importantíssimo na educação: 'mágica'!

Mas a diretora não parou por aí. Disse que era melhor eu começar logo naquele dia, assim que terminasse o recreio, pq era menos um dia letivo para repor... Eu quase caio da cadeira.

A diretora vendo meu desespero, tentou me acalmar. Me deu livros das séries que eu iria lecionar (7ª e 8ª) e me levou para a sala dos professores. Lá conheci pessoas que marcaram profundamente minha vida. Professores e Professoras que merecem ter seus nomes escritos com letras maiúsculas. Eram pessoas que faziam muito mais que apenas lecionar, suas aulas eram verdadeiras lições de vida.

Depois fui literalmente 'jogada aos leões'. A diretora me levou às minhas turmas. Lá fez as apresentações de praxe, e fui deixada na turma que teria aula naquele horário.

Como eu estava? APAVORADA!!!

Aquelas criaturinhas pareciam que iam me morder. Ouvi diversas reclamações dos alunos. Estavam furiosos (e com razão). Era a última semana de aula deles. A semana seguinte seria das provas da última avaliação.

Mas, como não tinha jeito, tentei conversar com os alunos e alunas explicando que eu não tinha culpa dessa demora.

Depois de um tempo, fui falando dos conteúdos, explicando o que veríamos em sala e os trabalhos que eles teriam que fazer para que eu pudesse justificar as notas (eram oito avaliações).

Ah, sim. Na sala dos professores, o vice-diretor me explicou que eu usaria 'módulos' para cobrir todas as aulas. Professores e Professoras foram pacientes, me explicaram como assinar os módulos, que deveria deixar os trabalhos dos alunos (corrigidos) nas pastas deles, e assim fui me acalmando um pouco. Era possível fazer 'mágica'. E a 'mágica'tinha até nome: "módulo'...

Meu primeiro dia terminou, e surpreendentemente (para mim), não morri. Não cheguei nem perto de ficar doente. Depois dos primeiros minutos de revolta, as conversas foram mais amenas e conseguimos chegar a um bom termo.

Vi que os alunos eram alegres, participavam, e que nem sequer mordiam....

Foi o início desse vício que me embriaga até hoje: lecionar.