Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

Coisas tristes


Acredite, a gente nunca vai estar preparada para certas coisas ...


Era segunda feira, e eu estava chegando na escola depois de uma fim de semana normal, pelo menos para mim. O ambiente estava movimentado como sempre: alunos e alunas passando, pessoal da secretaria separando os diários. Tudo aparentemente normal.


Chegando à sala dos professores fiquei sabendo que aquela 'normalidade' era superficial. Na noite de sexta feira, no final de um showmício (comício que terminava em show de algum artista local), houve o atropelamento de uma aluna da escola. Ela morreu. Madalena (minha colega e amiga) me disse que tentou me ligar para avisar, mas não conseguiu me achar (não existia celular na época). 


Fiquei consternada, a menina tinha sido minha aluna no ano anterior. Mas a vida continua. A direção chegou e comunicou que iríamos todos para a missa de 7º dia, na sexta. Viríamos para a escola e daqui sairíamos com os alunos para a Igreja do bairro.

Tudo esclarecido, fomos para a aula. Chegando em uma turma da 8ª série, percebi que TODOS os alunos estavam diferentes. Como se estivessem em transe. Parados, olhar perdido,  não se mexiam, não falavam, nada. Alguma coisa muito  séria estava se passando. Pensei que teria ligação com o atropelamento. Perguntei o que eles tinham, se era por causa da menina que faleceu.  Continuaram mudos. Perguntei, insisti. 


Aí eles começaram a falar, e eu não estava preparada para o que me contaram. Um começou, outro completou, frases que eram acrescidas, coloridas, e em todas MUITA dor e perplexidade. A coisa foi mais séria que eu imaginava. 

Me contaram que o show tinha terminado e estavam voltando todos andando pela rua. De repente o motorista de um carro joga o veículo em cima deles. Meus alunos me explicaram que quem percebeu a movimentação do carro indo para cima deles se jogou para o lado. A menina não foi rápida. O carro não passou por cima dela, ela conseguiu sair dos pneus, mas o cabelo dela ficou preso no para-choque traseiro. Ela foi arrastada , presa pelos cabelos, por mais de 100 metros. Enquanto isso os colegas gritavam e corriam atrás do carro, pedindo para parar. Mas, provavelmente com medo de ser linchado, o motorista não parou. Depois, sabe-se lá como, o cabelo se soltou. Ela ficou agonizando no asfalto. Os colegas (esses meus alunos e outros) correram para perto dela. O que eles viram foi macabro, principalmente para adolescentes de 14, 15 anos: a menina estava com parte do couro cabeludo arrancado, foi puxado da base do pescoço para a frente (meio da cabeça). Ela estava em carne viva, o intestino saindo para fora. Os colegas me disseram que empurravam para dentro, sem nem saber direito o que faziam. Imagino a dor e o desespero dessas crianças.

Alguém chamou a ambulância, que segundo eles chegou rápido. Ela ainda saiu com vida, mas morreu no dia seguinte.

Fiquei chocada e sem entender como tal atrocidade não havia sido noticiada. Nenhum jornal, rádio, noticiou esse  atropelamento. Só depois, conversando com outros professores é que entendi: as pessoas envolvidas no atropelamento eram 'gente grande'. Abafaram o caso. Uma menina morreu, mas pobre sempre faz mais filhos...

Nessa turma nenhum professor conseguiu dar aulas durante o mês. Os alunos não atrapalhavam, não faziam nada. Estavam presentes na sala, mas só o corpo. A cabeça estava bem longe dali... Aí não tinha sentido tentar dar conteúdo.  Eles não conseguiam sair do dia do atropelamento. Foi muito forte para eles presenciar tudo aquilo. Só o tempo foi diminuindo o impacto. Nós professores fazíamos apenas ouvi-los. E eles contavam o fato diversas vezes, repetidas vezes. Como se fosse tão irreal que parecesse uma brincadeira de mau gosto, uma mentira. Acho que contar, falar, ajudava a liberar a dor que eles sentiam. 

Mas isso ninguém pode prever. Não tem como estar preparado para agir nessas situações. O bom senso nos ajudou. E trabalhamos em grupo, todos conversando e tentando orientar para que a dor pudesse ser superada.





   


Professora, não me deixe ir com ele...

O que se faz em uma escola qdo um aluno ou aluna diz que não se sente bem? A gente liga para a casa desse aluno(a) e pede que venham buscá-lo. Normal, não?

Sempre pensei que isso seria a coisa mais lógica a fazer. E é. Mas jamais pensei que iria ficar frente a um pedido de socorro que não podia responder.

Estava na sala de aula e uma aluna disse que não se sentia bem. Levei a menina à sala da direção, para que chamassem os pais. Deixei a menina lá e voltei para a sala de aula. Deixar meus 'anjinhos' soltos na sala era perigoso.

Qdo a aula terminou fui na sala da direção ver se alguém já havia chegado para levar a menina para casa. Lá me deparei com uma cena muito esquisita: a menina dizia que não ia com o rapaz que veio buscá-la. Era seu irmão. Qdo ela me viu se agarrou a mim e só dizia, chorando: "Professora, não deixe ele me levar, por favor não deixe!"
Levei a menina para outra sala e tentei conversar com ela, perguntei pq ela estava com medo do irmão. Ela não me respondia, só repetia o pedido: não deixar o irmão levá-la. Fiquei apavorava. E se fosse caso de abuso? Mil coisas passavam na minha cabeça e tentei pensar como evitar que o irmão a levasse. Fiquei pelo menos uns 20 minutos com a menina. Eu e a diretora tentamos de tudo para convencê-la a falar. Desesperada, cheguei a dizer a ela que eu só precisava de um motivo, um só. Que se ela me desse esse motivo eu garantia (sei lá como) que ela não sairia de lá com ele. 
Ela não dizia nada. Aí a diretora disse que não poderíamos mais segurar ela na escola. Chamamos ele para levar ela. Ela precisaria ir. Ou contava o motivo do medo ou saía com o irmão. Ela saiu. Foi para a casa com ele. 
Meu coração ficou pequenininho. Um aperto enorme no meu peito. 
Fui para a sala de aula e dei aula como pude. Nem sei bem o que fiz nesse dia. 
Pior de tudo: isso foi em uma sexta feira. Só veria a aluna em questão na segunda. Nunca um final de semana pareceu tão longo.
Assim que cheguei na escola na segunda feira fui atrás da menina. Tava tranquila. Perguntei a ela se tinha acontecido algo na sexta, em casa. Ela bem tranquila disse que não, que o pai estava em casa. A impressão que dava era que o medo dela desapareceu como por encanto.
Fiquei de olho nela durante um tempo e nunca mais vi o comportamento de pavor.
Talvez o que ela tivesse medo era de uma surra do irmão, por ter aprontado alguma com ele. Vá entender... Tanto desespero, tanto medo, e no final... nada.

Melhor assim, mas bem que meu final de semana poderia ter sido menos angustiante...






Algumas dores...


Um dia a gente chega na escola e as coisas acontecem de um jeito que ficamos sem ação, sem reação... Ficamos impotentes frente à enormidade do problema e ao medo de nossos alunos e alunas. Ah, se nos deixassem resolver... Mas as coisas não são como gostaríamos que fossem.


Um desses momentos foi quando minhas colegas me chamaram em uma sala para ver as costas de uma aluna. Fui ver, era de cortar o coração. As costas todas machucadas, cortadas, algumas partes roxas...  Deu uma revolta. Com o um pais faz isso numa filha? Todas ficamos revoltadas. Dissemos que iríamos denunciar o pai pelos maus tratos. A menina ficou apavorada. Não queria que denunciássemos o pai. Ela se sentia culpada, dizia que o pai só agiu assim pq ela fez algo (não lembro mais o que) desaprovado por ele. 


Resolvemos não denunciar. Hj passados vários anos percebo o erro dessa atitude. Temíamos (e acredito que a menina tbém) que o pai ficasse mais violento com a denúncia. Nessa época as leis de proteção à criança não eram tão claras. Pai podia 'quase tudo'.


Alguns anos depois eu já estva em outra escola e essa aluna me encontrou. Foi na sala que eu estava lecionando e me mostrou o pescoço marcado. O pai quase a mata, foi no pescoço dela e só saiu pq a mãe e as irmãs arrancaram ele do pescoço dela. Tentei mais uma vez convencê-la a denunciar. Ela já era maior de idade, não era minha aluna e não podia fazer a denúncia sem ela consentir.


Ela saiu e me deixou com o coração apertado. Impotente diante de tanta agressividade e medo. Hj sei que deveria ter insistido, feito denúncia anônima, sei lá. às vezes fico pensando se ela ainda está viva. Se conseguiu sobreviver à agressividade do pai.  


Foi de havaiana...


Eu juro que não entendo certos pais. Sei (e como sei) que os 'anjinhos' deles de anjos não tem nada. Mas precisa tanta agressividade? Já soube de alunos e alunas que saíram da escola debaixo de tapa. Engraçado, eles com só um filho ou filha meio danado(a) querem bater, o que eu faço com a meia dúzia que tenho em cada turma? Mato?
Pq se eles, que são pais, não tem paciência com um só, eu com cinco, seis em cada turma, vou ter como?


Mas preciso ter. E às vezes, por mais danado que seja o menino, é preciso lembrar que é uma criança, que tem (e deve ter) atitudes de criança. 


Essa história começa em uma sala de aula de uma turma de 8ª série. A maioria foi minha aluna desde a 5ª série. Depois de 4 anos junto a eles, conhecia bem cada 'anjinho' dessa turma. Lembro que era final de ano (com metade da turma 'pendurada', precisando de nota) e que passei um exercício valendo dois pontos para somar com o teste. Escrevi o exercício no quadro e fui olhar como estavam respondendo. Aí chego na carteira da criatura mais 'angelical' da turma. Um menino que só de olhar a gente sabia que não ficava quieto. 
Ele não estava copiando. Questionei o 'anjinho', lembrando que as notas dele não estavam nada boas. Ele me respondeu que não podia copiar, que a mão direita estava inchada. Não acreditei e pedi para ver. Estava inchada, muito inchada. Imaginei  na hora que o menino devia ter recebido um 'corretivo' do pai. Mas perguntei como a mão tinha ficado daquele jeito. Ele me disse que caiu e se apoiou com a mão direita. Vi que era mentira, o olho dele dizia isso. Levei o menino para a direção.


Lá chegando relatei ao diretor o ocorrido e disse que estava preocupada com a mão do menino. O diretor pediu para ver a mão, e o menino mostrou a mão esquerda. Aí vi que as duas mãos estavam inchadas. O diretor olhou para mim e percebi que ele, assim como eu, estava entendendo o que tinha acontecido. Qdo pedi ao menino que explicasse como tinha machucado as duas mãos, o menino que se enrolou todo.


O diretor estava transtornado. Ele não admitia que crianças sofressem maus tratos dos pais. Pediu que eu deixasse o menino com ele, que levaria ao Posto Médico, que é perto da escola. Voltei à sala de aula e assim que terminou  minha aula fui falar com o diretor e saber notícias do menino. O diretor me disse que como eu, viu na hora que as mãos do aluno estavam inchadas pq ele apanhou, e ainda disse: "foi 'bolo' de havaiana". Achei graça. Tudo bem saber que o menino levou 'bolo' (apanhou nas mãos), mas dizer a marca do chinelo que foi usado na surra...


O menino foi levado ao Posto, saiu de lá com antiinflamatório, e mandado para casa, com o pedido para que o pai fosse na escola. O diretor disse que queria conversar com o pai e mostrar que quem devia ter levado o menino ao médico era ele e não a escola.


Ficamos observando o menino e nunca mais vimos ele com qq machucado. Parece que a 'conversa' do diretor com o pai do menino fez efeito.


Mas não sei se o diretor confirmou a marca do chinelo que foi usado para bater nas mãos do menino. Será que foi havaiana mesmo?


O que fazer?


A vida de professora tem momentos de profunda tristeza. A gente se sente impotente perante problemas tão grandes e na maioria das vezes sem ter ninguém com quem contar. A quem pedir um conselho, uma ajuda.


Na realidade poucas vezes me senti só, desamparada. Posso dizer que grande parte da minha vida profissional (mais de 90%) foi compartilhada com colegas que sempre me ouviram e aconselharam. 


Como nos casos mais graves que acompanhei. O primeiro deles quando eu tinha menos de 5 anos lecionando.


Meninas, meninas... Elas eram tão doces, tão amigas. Sentia um grande afeto por elas. E sabia que elas gostavam de mim.


Confiavam em mim. Tanto que foi a mim que chegaram para contar de casos de abuso sexual. Eu fiquei em pânico. Cheguei a dizer que não era verdade. Corrigi na hora, as meninas precisavam de ajuda e eu, a adulta (?) é quem deveria ter mais bom senso. 


Tentei conversar e entender quem abusava, como, desde qdo. A menina que estava sofrendo abuso (uma me contou e a amiga ajudou, elas achavam que eu podia resolver...) disse que desde os 12 anos um rapaz abusava sexualmente dela. Primeiro com uma arma, depois ameaçando a família dela. Para mim parecia uma história de terror,  totalmente irreal. Mas era verdade, os olhinhos dela não eixavam qq dúvida. E eu precisava ajudar. Como?


Primeira providência: pedi a alguns meninos que acompanhassem as duas até em casa, no final das aulas. Ela me disse que qdo o abusador queria ficar com ela esperava na saída da escola. Ele era um 'marginalzinho' do bairro e por isso mesmo temido. Ele ameaçava ela, dizia que sabia onde ela morava e que faria mal à família dela se contasse para alguém. Pensei: "onde é que fui amarrar meu burrinho. Vou 'bater de frente com um 'marginalzinho'?" Não tinha jeito, eu tinha que enfrentar.


Naquela época não havia Conselho Tutelar, as coisas (inclusive denúncias sobre abuso a menores) eram da alçada da polícia. Conversei com Madalena, minha amiga professora de História. Ficamos as duas tentando convencer a menina a contar para os pais. Não sabia, mas a menina morava com os tios. Os pais estavam no interior. Outra coisa que não sabia: o tio da menina era policial.


Depois de umas duas semanas, ela me disse que contou o acontecido para o tio, e que o primo estava vindo toda a tarde buscar ela na escola. Para mim, foi um alívio. Só que eu estava entendendo as coisas de forma errada. Pensava (na minha ingenuidade) que o primo esperava por ela para o abusador não chegar perto. Não era para isso. Ele estava vigiando. No dia que o abusador foi para a porta da escola, o primo de minha aluna ligou para o pai. O tio da menina chegou numa viatura e perseguiu o abusador. Segundo minha aluna, o tio disse que o abusador perdeu o controle da moto (ele vinha pegar ela de moto), sofreu um acidente e morreu...
Bem, quem quiser tire suas próprias conclusões. Eu não estava lá. Não vi nadinha.
Só estou reproduzindo o que me disseram.


O mais triste disso tudo é que essa menina nunca conseguiu ter uma vida normal. Era assustada, nervosa. Casou e teve problemas com o marido. Pobre, sem dinheiro para um psicólogo, ficou com as sequelas de anos sendo abusada. 


Muito triste...



Uma Guerra


Quem é Professor ou Professora e tem compromisso com o seu trabalho sabe que cada dia é uma verdadeira luta para 'convencer' as criaturinhas a prestarem atenção.

Mas a batalha que vou contar hj não tem nada a ver com essa nossa batalha cotidiana. Foi um momento de profunda angústia para todos os que estiveram presente na ocasião.

Bom, como diria uma Professora minha: "vamos aos fatos".

Estava eu, na minha sala de aula tranquila, qdo chega um aluno (de outra turma) apavorado: "Professora, Professora, corre para o portão. Levaram um aluno da escola preso." Fiquei sem entender. Como 'levaram um aluno preso'? Pedi ao menino que me contasse o que tinha acontecido, com calma, senão eu não conseguiria ajudar.

Ele me disse que os alunos do turno da manhã estavam no portão da escola, do lado de fora , esperando o professor de Educação Física. Nessa época as aulas de Educação Física eram em horário contrário ao da aula. Se o aluno estudava de manhã, as aulas de Educação Física eram no horário da tarde.
Um dos alunos que estavam no portão começou a 'tirar onda' do policial que estava de vigia no portão.O policial não gostou e chamou a radio patrulha. Essa, por sua vez, levou o aluno preso. Disse ao menino que veio me procurar que falasse com a direção. Aí ele disse que não tinha ninguém da direção, que foi a moça da secretaria que mandou falar comigo. Eu não sei pq essa mania de mandar para mim tudo que é abacaxi. O menino nem era meu aluno. Mas não podia deixar de agir, só não sabia bem como.

Resolvi então checar a história do menino. Mandei a turma (que a essa altura do campeonato já estava para lá de agitada, pois ouviram tudo que o menino contou) ficar na sala. E ai daquele que eu pegasse no corredor. Nessa época eles tinham um medo horroroso de mim. Eu era uma das professoras que mais reprovava.

Saí da sala de aula e fui de porta em porta 'arrebanhando' meus colegas. Não era um problema que desse para resolver sozinha. Fechamos o bloco das salas de aula e fomos à secretaria. Lá a moça que trabalhava com os diários confirmou que um aluno da manhã foi preso. A idade do menino: 12 anos. Enquanto estávamos nos inteirando do problema, os alunos (de TODAS as salas) saíram dos blocos de salas de aula e estavam no corredor que dava acesso à saída da escola. Lá fora mais policiais chegavam. Tememos pelo pior.

Entre os alunos e alunas enfurecidos pela prisão do colega e a polícia, estávamos nós, os professores. O bloco da direção, local que agrupava secretaria sala da direção, suporte pedagógico, biblioteca e sala dos professores era a porta de entrada para os corredores das salas.

Fechamos o portão de acesso à secretaria para impedir (ou tentar impedir) a saída dos alunos. Depois desse portão (que dava acesso às salas de aula) havia um corredor que terminava em outro portão. Esse outro portão ia dar no pátio de entrada da escola. Uns 10 metros depois estava o último portão, que demarcava a área externa da escola. Era nesse último portão que estavam os policiais.

Percebemos (eu e os demais professores e professoras) que a coisa podia ficar muito feia se alunos e policiais se encontrassem. Com certeza ia sair sangue. Precisávamos evitar esse encontro a todo custo.

Nos dividimos em 3 grupos: um foi tentar acalmar os alunos, outro foi tentar conversar com os policiais, e o terceiro ficou tentando abrir a sala da direção para telefonar(nessa época não havia celular, e telefone fixo só tinha dentro da sala da direção). Resolvemos ligar para o Sindicato dos Professores. Estávamos desesperados, só ouvíamos os gritos dos alunos de um lado e víamos várias viaturas da polícia chegando no portão do outro lado.

Estávamos no meio de uma guerra. Tentando evitar o pior. Não sabíamos a quem recorrer, e o sindicato que sempre esteve presente em problemas que a escola enfrentou, era o único lugar que pensamos em pedir ajuda.

Os professores que foram tentar acalmar os alunos (eu estava nesse grupo) tiveram muito trabalho, os meninos e meninas estavam revoltados. Era difícil convence-los que no momento precisávamos de calma, que tudo ia se resolver.

Enquanto isso, o outro grupo conseguiu abrir a sala da direção (se não estiver enganada arrombaram a porta) e a presidente do Sindicato foi avisada do problema. Ela disse que ia entrar em contato com o Secretário de Segurança Pública e assim que encontrasse o aluno o levaria para a escola. Disse que estava mandando um grupo de professores e advogados do sindicato na frente para nos ajudar a conversar com os policiais.

Segundo os professores que falaram com a Presidente do Sindicato, ela pediu ainda que nós fizéssemos o possível para não haver embate. Estávamos tentando.

Depois que falaram com o Sindicato, os professores foram falar com os alunos, explicando que tinha gente tentando resolver, pedimos calma. Saberem que a presidente do sindicato estava empenhada em resolver o problema e trazer o aluno de volta para a escola ajudou a diminuir um pouco a exaltação dos ânimos dos alunos.

Mas na entrada, o grupo que estava tentando negociar com os policiais estava tendo problemas. Observando do bloco da direção vimos que eles estavam ameaçando entrar. E nada do pessoal do sindicato chegar, vi a hora da coisa desandar.

De repente, tudo se acalmou, vi os policiais se afastando um pouco do portão. Os professores saíram do portão e entraram no bloco da direção. Perguntei o que aconteceu. Me contaram que qdo a coisa tava feia, e os policiais já ameaçavam invadir a escola, uma professora, que estava grávida de 7 meses, se agarrou nos dois lados do portão e disse: "Só entram aqui por cima do meu cadáver!" A forma decidida como aquela mulher/mãe disse a frase parece que esfriou os ânimos dos policiais.

O pessoal do Sindicato chegou e perguntou como estavam as coisas. Informamos que os dois lados estavam mais calmos. Os advogados do sindicato conseguiram convencer os policiais a saírem da porta da escola. Qdo todos os policiais saíram, nós mandamos os alunos para casa.

Fomos todos para a sala dos professores. Ficamos lá, esperando a Presidente do sindicato. Diferente de outros momentos, a sala estava silenciosa. Estávamos exaustos. Foi uma tarde que gostaríamos de esquecer. Mas faltava ainda saber onde estava o aluno que foi preso.

Depois de algumas horas o menino chegou junto com a Presidente do Sindicato. Ah, o diretor chegou, querendo saber detalhes. Se já estávamos calados, não seria a presença dele que nos faria mudar de atitude.

Qdo o menino chegou contou que os policiais ficaram rodando com ele na viatura, e ele morrendo de medo. A mãe do menino, que já estava na escola, esperando conosco pela chegada do filho levou-o para casa. E nós saímos tbém. Sem muita conversa. Tudo que passamos foi demais para nós. A responsabilidade pela segurança dos alunos nos levou a extremos.

A professora que barrou a entrada dos policiais na escola com o próprio corpo fez isso por pensar que qq um dos meninos e meninas que estavam dentro da escola poderia ser um filho seu. Ela me disse isso anos depois (eu já havia saído da escola) qdo nos encontramos em uma reunião do sindicato. Para mim ela foi uma heroína. Foi ela que evitou o desastre. Sem a coragem dela, talvez todos (professores e alunos) tivessem sofrido com a entrada dos policiais.

Esse caso rendeu ainda alguns 'capítulos'. O Sindicato deu queixa dos policiais (eles podiam prender o aluno, mas precisavam comunicar aos responsáveis e levar o menino para uma delegacia de menores, o que eles não fizeram). Vi algumas reuniões do Sindicato com a comandante da polícia e a direção da escola. Parece que a mãe do menino estava junto.

Ma qq punição que os policias possam ter sofrido não apagou o medo que o menino ficou. Ele deixou a escola. Demorou anos para retomar os estudos.

Mais um que sofre pela ação de outros e não consegue se recuperar. Ninguém cogitou de solicitar ajuda psicológica poara o menino. A polícia podia se encarregar disso. Mas ninguém pensou e quem sofreu foi o menino, que ficou arredio, desconfiado e agressivo...