Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

Diferentes mas não desiguais

Quando trabalho temas ligados à sexualidade, geralmente uso alguns vídeos que acho interessantes. Um deles é esse "Diferentes mas não desiguais" (https://www.youtube.com/watch?v=KBx_8cqwbFQ&t=99s).

Ele faz parte de um grupo de vídeos sobre sexualidade humana que estão no Youtube. Começam com uma 'historinha' e depois vem uma discussão com a plateia do programa "Sexualidade, prazer em conhecer". 

Uso apenas os vídeos iniciais do programa. E esse que falei acima é bem interessante para discutir tratamentos diferentes para meninos e meninas.

Mas, como nem sempre as coisas  funcionam como o planejado, não consegui passar o vídeo. Então, seguindo pelo improviso, resolvi contar uma 'história' baseada no bendito vídeo.

"Imagine que você tem uma  filha de 16 anos e um filho de 15 anos. Cada um tem seu quarto, individual. 

Um dia a menina pede permissão para trazer o namorado (que você acha um rapaz bem legal, gosta dele) para dormir com ela (apenas os dois no quarto). Você deixaria?"

Foi um alvoroço dos melhores! Meninas e meninos falando, dando opinião. A maioria disse que deixaria, mas falaram da prevenção. Alguns meninos e meninas disseram que não permitiriam. "Não acho certo; Para ter relação sexual tem que casar; São muito novos" foram algumas explicações para não permitir. 

Aí fiz a segunda pergunta: "Poucos dias depois o menino pede permissão para trazer a namorada (que você acha um garota legal, gosta dela) para dormir com ele (apenas os dois no quarto). Você deixaria?"

Do mesmo modo que comentaram que permitiriam para amenina, permitiriam para o menino. E as justificativas foram as mesmas. Mas o que achei bem legal foi a coerência. Não proibiriam apenas as meninas. O que vale para a 'filha' vale para o 'filho'. Pelo menos isso.

Conversando nas turmas, perguntei se gostariam de fazer uma 'pesquisa' com outras pessoas para saber as respostas delas. Concordaram e coloquei no papel a tal 'história'. Pedi que pesquisassem duas pessoas. Perguntassem se permitiriam filho/a dormir com namorada/o. E por que permitiria ou não.

Os resultados foram, até agora: 22 alunos e alunas trouxeram a pesquisa respondida. Devo receber mais algumas até o final de semana.
Mas já tenho algumas respostas. Vale lembrar que cada aluno pesquisou duas pessoas. E que cada pessoa respondeu 2 questões: uma sobre o namorado da 'filha' e outra sobre a namorado do 'filho'. Tudo bem, sei que poderia ter diversificado, falado de relações homoafetivas. Mas resolvi seguir a proposta do vídeo.

Sobre os resultados: a maioria disse que não permitiria que 'namorado' ou 'namorada' dormisse no mesmo quarto que 'filha' ou 'filho'. Apenas uma pessoa pesquisada disse que não permitiria que a 'filha' levasse o namorado para dormir, mas permitiria que o filho levasse a namorada. Justificativa para o menino (mais novo que a tal irmã) pudesse levar a namorada para dormir em casa "Ele é homem."

Pelo menos só uma pessoa pensou assim.

Dos 88 resultados (22 x 2 pessoas entrevistadas = 44 x 2 perguntas = 88 respostas), 67 foram NÃO. A justificativa que mais apareceu (mais de 30 % dos não) para não permitir que 'namorado ou namorada' dormisse com filha/o foi a 'idade' (são muito novos; não tem idade para isso; não tem responsabilidade para assumir). Dessas pessoas que responderam que consideravam a filha de 16 anos e o filho de 15 anos muito novos, algumas disseram claramente que 'depois dos 18 anos pode fazer o que quiser'. 

 Já outras pessoas que responderam com negativa ao pedido da 'filha e do 'filho' disseram apenas que não concordavam com o fato de namorados dormirem juntos.

Outra justificativa para negar o pedido da 'filha' e do 'filho' foi relacionado ao receio de gravidez da menina (mesmo que essa fosse a namorada do filho, pois quem teria que arcar com a responsabilidade de uma ajuda financeira a um possível neto ou neta seriam esses pais).

Algumas das pessoas entrevistadas disseram que era necessário 'casar primeiro'. 

Das pessoas que disseram SIM para o pedido, algumas reforçaram a confiança na filha e filho para saberem se proteger. Que preferiam que filha ou filho tivesse relações sexuais em casa, um lugar seguro, que em uma 'esquina qualquer'. 

Estou bem satisfeita com o resultado. Tinha receio que ainda dissessem 'não' apenas para a menina, mas que o menino, por ser 'homem' seria liberado.

Entendo o receio dessas pessoas que responderam o questionário de forma negativa quando falam que pode ter consequências.  Por que mesmo usando algum método contraceptivo, sabemos que nenhum é 100% seguro. Então sempre existe a possibilidade de gravidez.

Mas, mesmo assim já achei bem legal os resultados. Estamos melhorando, a passos bem pequenos, mas estamos.

Meu anjo rebelde e o preconceito

 Final de semestre e eu correndo para terminar as revisões. As provas seriam na semana seguinte e eu ainda tinha muita coisa para revisar...

Mesmo 'esbaforida', quando entrei na sala de aula de uma turma de 6ª série (atual 7º ano)  naquele dia, percebi um clima diferente. Alunos e alunas pareciam mais agitados que o normal, e aquele menino que gostava de brincar e tinha dificuldades em ficar sentado na cadeira, estava sentado e encolhido em um canto.

Perguntei se estava bem, afinal ele estava quieto, diferente do seu comportamento habitual (Só eu mesma para me incomodar com aluno quieto, mas a criatura NUNCA ficava quieta, só podia estar doente). Ele me disse que estava bem; e eu fingi aceitar. Mas já pensando em conversar com a criatura depois que copiasse um exercício de revisão para a turma.

Comecei a escrever as questões no quadro e, de repente ouço a palavra que eu nunca esperaria escutar nessa turma: “viado!”. Seguiram-se outros impropérios do mesmo tipo, vindo de diversos colegas. O tom de voz não deixava dúvidas que era uma agressão. E eu sabia a quem ela era dirigida. Àquele aluno que estava diferente, quieto. Ele nunca foi quieto. 

Desde o primeiro dia de aula eu sabia que ele gostava de brincar e provocar colegas e professores: afinal, não é todo dia que vemos um aluno com uma faixa colorida amarrada na cabeça. Não dava para deixar de prestar atenção nele.  A cada aula, esse menino aparecia com acessórios diferentes naquele cabelo. Um cabelo curto, que ele insistia em colocar para cima com gel. Eram prendedores de cabelo de diversos tipos: ‘tererês’, ‘xuxinhas’, tudo o que ele conseguisse pegar emprestado com as colegas.

Porém, o que mais me chamava a atenção não era esse menino, era a turma. Geralmente, quando um aluno faz qualquer ‘brincadeira’ com adereços considerados femininos é taxado de homossexual pelos colegas, mas isso não acontecia naquela turma. Por quê? Fui conversar com a coordenadora da escola e ela me esclareceu: essa turma estava junta desde a 3ª série e o menino em questão sempre fez essas brincadeiras, era só para provocar. Os colegas acostumaram e por isso nunca falaram nada. Até aquele dia.

Mas o que fez a turma mudar de atitude em relação ao colega? Pedi calma, e perguntei aos meninos (eram eles que estavam agredindo o colega) o motivo daquelas palavras, já que ele estava como sempre esteve: com um prendedor de cabelo no meio da cabeça. Nesse dia específico esse prendedor era rosa choque. Mas e daí?

Eles me responderam que um adulto disse em sala, referindo-se ao menino com o prendedor rosa choque, a seguinte frase: “Essa Coca é Fanta”. Pronto. Estava tudo claro. Essa frase foi entendida pelos alunos como uma ‘cobrança’: eles estavam aceitando como colega e amigo, um ‘gay’. Ele não era ‘Coca’ como eles, era ‘Fanta’, ou seja, homossexual. Pelo menos foi assim que os alunos entenderam. E se sentiram na obrigação de mostrar que não aceitavam esse comportamento não heterossexual por parte do colega. Pelo que entendi, os meninos dessa turma sentiram que precisavam deixar claro para os demais colegas (de outras turmas) que eles, os meninos daquela turma, não eram como ele, por isso expressaram agressões.

Uma frase foi o estopim para injúrias contra o menino. Ele ficou acuado no canto da sala, quietinho, mas sem tirar o prendedor do meio da cabeça(a tia ficou com tanto orgulho da força daquela criança! Mesmo sofrendo as agressões não abriu mão do adereço.). Talvez estivesse com medo de ser agredido fisicamente, e assustado com sua turma. Eu estava assustada, pois nunca havia presenciado tamanha hostilidade em sala de aula.

E estava furiosa!!!! Se a pessoa que disse a tal frase na sala de aula passasse na minha frente acho que não ia ser bonito de se ver... Afinal, como alguém fala uma frase dessas em sala? Primeiro procurei me  recompor, tentar me acalmar e então comecei uma conversa com a turma. Não que tenha funcionado muito, mas tentei. Ah, a tal revisão foi para o espaço. Quem é que ia conseguir explicar qualquer coisa no meio desse furacão de preconceito que estava arrasando a turma?

Quando saí da sala de aula fui direto para a direção da escola e expliquei o acontecido. Deixei claro que estava FURIOSA. Pedi que a diretora tomasse providências. Sei que ela conversou com a pessoa que disse a fatídica frase. Pq essa pessoa nunca mais falou (mesmo em tom de brincadeira, como fazia conosco, adultos e adultas) qualquer coisa relacionada a 'Coca' ou 'Fanta'. 

Mas essa frase deixou consequências. O menino que gostava de brincar com adereços voltou para a escola 'comportado'. Terminou o semestre sem a alegria que eu via em seu rostinho quando me recebia na porta da sala com os adereços de cabelo. Terminou quieto. Eu cheguei a perguntar se ele deixou de usar os enfeites no cabelo por causa da reação dos colegas. Ele me confirmou. Disse que conversou com a mãe e ela disse que seria melhor ele não brincar mais. Para evitar represálias. Entendi a posição da mãe. Mas fiquei triste. 

Como disse era final de semestre e nas férias procurei me preparar discutir a necessidade  de cobrar qualquer tipo de comportamento do outro apenas por ter determinado sexo biológico. Nunca entendi essa necessidade. Talvez porque eu, enquanto criança era uma menina-moleque. Ou, como diria meu pai, 'um machinho de primeira'.kkkkk
Hoje percebo que meu pai e minha mãe nunca nos forçaram a determinados comportamentos esperados para mim por ser menina. Não gostava de brincar de boneca ou qualquer brincadeira que me deixasse parada. Eu amava correr, pular, brincar de corda, amarelinha, roda, bola de gude, empinar pipa, e ... futebol. Jogava junto com as demais crianças (meninos). E estava tudo certo. Nunca fui reprimida por brincar de coisas que eram percebidas como 'coisas de menino'. 

Mas voltando ao início das aulas: me preparei e no primeiro dia de aula procurei entender (sem a raiva que estava antes) os motivos da agressão ao colega (que saiu da escola assim que terminou as provas). As respostas me deixaram impressionada. Os alunos (aqueles que agrediram verbalmente o colega) me disseram que não acreditavam realmente que o menino dos adereços no cabelo fosse gay. Mas... "aquele não era um comportamento de homem". Esse foi o motivo real da agressão. O comportamento esperado para o sexo masculino não incluía adereços no cabelo. Triste... 

Perguntei então se eles já tinham assistido filmes de piratas. Disseram que sim. Perguntei se acreditavam que o comportamento dos piratas era 'de homem'. Também sim. Aí perguntei como era o cabelo dos piratas. Cortado? Curto? Ou era um cabelo grande preso ou trançado? Ficaram calados. 
Acredito que de alguma forma os fiz pensar. Depois fui explicando que os comportamentos esperados para homens e mulheres mudam ao longo do tempo (e a depender do lugar). Um dos exemplos que dei foi o kilt. 

Não sei se o que falei, ou como abordei o tema ajudou. Isso só o tempo pode dizer. Mas espero ter plantado um a sementinha. E quem sabe essa sementinha pode trazer frutos lindos no futuro? Eu só posso ter esperança. E é essa esperança que me move. Que um dia as pessoas possa  questionar as normas engessantes que a sociedade prega. E que isso possa produzir pessoas mais livres e felizes.