Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

A primeira escola


Mimeógrafo

Trabalhar em uma escola da periferia de Aracaju não é fácil. Faltava tudo. Desde giz (isso a mais ou menos 20 anos atrás) até papel para prova.

Para os(as) professores(as)mais novos o que vou contar pode parecer coisa de outro mundo, irreal. Mas era tão comum...

Nossas provas (e qualquer atividade que passássemos na escola) não eram xerocopiados. A gente usava o mimeógrafo à àlcool (tinha um à tinta, que eu só vi na segunda escola na qual trabalhei). Mesmo comunicados aos pais eram  mimeografados. Xerox era luxo. E muito caro...

Sabem o que é mimeografar um texto ou desenho? É pegar uma folha de stencil (com uma tinta roxa que deixava nossas mãos arroxeadas por dias) escrever na parte própria para tanto e levar essa parte que foi escrita  para o mimeógrafo. Aí a gente rodava uma manivela e ia colocando papel ofício no mimeógrafo. No mimeógrafo tinha um lugar para colocar o álcool. O álcool servia para que a tinta que estava no stencil passasse para o papel ofício. Quando a gente rodava  a manivela, o papel entrava por um lado, rodava no cilindro onde estava a matriz (stencil escrito) e saía do outro lado com a cópia do que estava na matriz. Achei na net um vídeo que pode explicar melhor...


http://www.youtube.com/watch?v=z462TDNNITk&feature=related

Mas como eu disse a escola nessa época era pobre. MUITO pobre. A gente precisava economizar stencil, que era caro. Aí aproveitávamos todo o pedacinho de stencil. Usávamos um mais de uma vez. Aprendi com minhas colegas dessa escola que a folha que vem no meio do stencil (para evitar que o carbono do stencil se danificasse) era ótima para escrever novamente. Pq a folha apropriada a gente usava uma vez, escrevia nela e usava para tirar as cópias que queríamos. Mas qdo precisávamos de mais folhas, aí a coisa enrolava. A direção da escola racionava o stencil. Então, para 'multiplicar os pães' (nesse caso as folhas de stencil) nós usávamos um mesmo carbono mais de uma vez...

Perguntei hj a uma colega se ela chegou a usar essa folha intermediária do stencil para  'aproveitar' o carbono. Ela confirmou. Pobreza generalizada. Era uma época na qual a escola não recebia os recursos  direto do governo federal, como hj em dia. O dinheiro vinha para a secretaria de educação e lá eles compravam o que queriam e na quantidade que achavam certo. O que nem sempre atendia às reais necessidades da escola.

Outra coisa que aprendi sobre mimeógrafos: a gente podia 'raspar' com uma lâmina de gilete a parte de trás do stencil qdo errássemos algo. Não ficava muito bom, mas era melhor que riscar ou copiar tudo de novo, até pq não havia stencil para isso...


Livro didático?

Não esse 'luxo' a gente não tinha... Era tudo copiado no quadro. Fazíamos resumos dos assuntos e escrevíamos bastante.
Os alunos reclamavam um pouco, e eu acredito que com razão. Imagine que eu enchia um quadro negro (daqueles de 3 metros) umas duas  vezes em cada aula de 50 minutos. Mas copiavam...
Quando o Programa do livro didático chegou, foi uma festa. E um alívio, para todos. Meus alunos não precisariam mais tentar 'advinhar' o que meis 'esquemas' queriam dizer... Uma vez desenhei uma bactéria e eles pensaram que era uma TV...



Se não tiver sangue frio...

Tem coisas que eu acho que só acontecem comigo. Estou eu, calmamente escrevendo no quadro (não tínhamos livro didático e o jeito era escrever, escrever, escrever...) qdo um aluno levanta, pega a cadeira e ameaça jogar ela na minha cabeça. Fez-se silencio na sala. De repente estavam todos olhando para o menino.

Não sei como tive calma para dizer: "Meu filho, vc quer jogar a cadeira na minha cabeça jogue. Eu morro, mas não se perde muito. Não tenho filhos nem ninguém que dependa de mim. Mas vc vai ter problemas, pq vai preso. Não acho que seja uma coisa boa para vc." Aí o menino abaixou a cadeira e disse que era brincadeira. Respirei aliviada. Não confiava muito que o menino estivesse brincando. Ele tinha uns 'rompantes' esquisitos. Um dia, jogando vôlei na escola, arrancou à dentada um pedaço da orelha de um colega (que estava jogando do mesmo lado que ele), pq esse colega (que ficou sem parte da orelha) errou na hora de dar um passe e o outro time ganhou.

Detalhe: era um jogo no recreio, não valia nada.

Eu ia muito confiar que o menino não jogaria a cadeira na minha cabeça...


O telhado
Uma segunda feira chegamos na escola e vimos que parte do telhado de um dos blocos de salas de aula estava no chão. Caiu durante o final de semana. Ainda bem, pq se fosse durante a semana muitas crianças (e nós professores e professoras) teríamos nos ferido. Estávamos comentando sobre o alívio de não ter acontecido nada grave ( o telhado caiu, mas ninguém ficou ferido), qdo a diretora chegou e disse que fossemos dar aula nas salas que o telhado não havia caído. Como dar aula? E se o resto do telhado finalmente desabasse?

A diretora não conversou: ou íamos para a sala imediatamente ou os diários seriam carimbados com 'aula a repor'. Dissemos para ela colocar o 'aula a repor', não iríamos nos arriscar nem colocar em risco a vida dos alunos e alunas. Mas sabíamos que não era possível ficar sem dar aulas por muito tempo. Pensamos em uma forma de resolver o problema e pensando juntos resolvemos chamar os pais para verem o estado das salas de aula. Mimeografamos convites para uma reunião urgente no dia seguinte.
Enviamos os convites pelos alunos (estavam na escola) e fomos de rua em rua perguntando em qual casa morava algum aluno da escola. Essa é uma das vantagens de trabalhar em uma escola de bairro. Os alunos moram perto e temos contato fácil com os responsáveis. Nossa ida 'de porta em porta' rendeu frutos. Conversamos com alguns pais e explicamos nosso medo. A notícia de que o telhado da escola estava caindo correu por todo o bairro. No dia seguinte, dezenas de pais estavam na escola no horário combinado. 

Explicamos a eles o que estava acontecendo e nosso receio que se o resto do telhado desabasse alguém saísse ferido. Um filho ou filha deles poderia se machucar. Mas nós não podíamos sustentar nossa posição de não entrar nas salas por muito tempo. 

Para mostar a gravidade do problema levamos os pais para ver a situação das salas de aula. Ficaram horrorizados. Questionaram como a diretora pensou em deixar os filhos deles em um lugar tão inseguro. A diretora, por sua vez estava furiosa conosco. Ela não imaginava que chamássemos os pais. Muito menos que mostrássemos as condições da escola. 

Para 'melhorar' a situação, os pais resolveram que não mandariam os filhos para a escola enquanto o telhado não fosse consertado.  Chamaram imprensa, foi a maior confusão.

Resultado: em uma semana a escola entrou em reforma...


E a média é...


Já imaginaram acordar e descobrir que aquilo que vc dava como certo não é mais tão certo? Pois foi assim que começou meu dia. Era janeiro de 2008, tinha acabado de sair da minha primeira escola. Era meu primeiro dia de férias e esperava que me chamassem da Secretaria de educação para assumir outra escola.


Recebi um telefonema: da antiga escola. Com uma notícia muito esquisita (pelo menos para mim). Eu precisaria retornar à escola para modificar os diários. Muitos alunos estavam aprovados. Como? Eu tinha certeza que fiz as médias certinhas. Conferi duas vezes justamente para não voltar mais lá. A moça da secretaria me explicou. É que chegou na escola uma portaria do secretário de educação baixando a média para aprovação. Agora, ao invés de média 5,0 o aluno passaria de ano se tirasse média 4,1.


Como é que a gente dorme com uma média e acorda com outra? Eu já estava de férias. Um absurdo, Diminuir a média depois que os diários já estavam encerrados.


Fiquei muito chateada, e não acreditei que essa portaria valesse já nesse ano 9que estava encerrado). Disse à moça da secretaria que eu ia na escola á tarde. Mas liguei para uma pessoa para tirar a dúvida (achei tão sem propósito essa ideia de média 4,1 que precisei ouvir de outra pessoa a confirmação). Liguei para a secretária de uma escola que eu conhecia. Ela me confirmou que a 'maluquice' era verdade e que eu precisaria voltar na escola e aprovar os alunos que tivessem pelo menos 4,1 de média. Comentei com essa secretária que estava chateada pq não queria mais voltar na escola, que havia pedia para sair de lá. A secretária me disse então que eu poderia ir para a escola que ela estava, a professora de Ciências estava pedindo para sair. Pronto, era o que eu precisava, uma escola com vaga para mim, e o melhor, perto da minha casa....


Fui na primeira escola à tarde e arrumei os diários. E fim. Só voltei lá em outra condição, como convidada.


Mas esqueci de dizer pq a média era 4,1. Pq o secretário de educação achou que como um aluno que tira conceito "C" (em estados que trabalham com conceito) está aprovado, e que esse conceito "c" equivale à notas entre 4,1 e 5, seria lógico que um aluno com nota 4,1 (que estaria aprovado em outro estado, se saísse daqui  e fosse para um estado que transformasse essa nota 4,1 em conceito 'C' ). Pode até ter lógica, mas é esquisito. E durou muitos anos. Um absurdo.