Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

Pesquisa

Gosto muito de fazer pequenas 'pesquisas' com meus alunos. Não uma pesquisa nos moldes acadêmicos, mas pesquisar as visões que alunos e alunas tem sobre temas diversos.
Ano passado (2018) eu estava prestes a iniciar o Reino Plantae. E pensei em uma forma de introduzir o assunto através de uma pesquisa que alunos e alunas fariam com  adultos do bairro. Sobre o uso de plantas medicinais. Duas perguntinhas: "Você faz uso de alguma planta medicinal?"; e se a pessoa respondesse afirmativamente viria a segunda pergunta (dividida em duas, que coloquei em uma tabelinha): "Qual planta? Para que? Abaixo vai o modelo que entreguei aos alunos e alunas.
Pedi também que pedissem uma folhinha da planta. A ideia era montarmos em painel com essas folhas. Comparar formatos, texturas. Achei que podia ficar legal.

 Usa alguma planta para tratar doenças (febre, problemas de estômago/intestino, vermes,...)? (  ) Não      (  ) SIM     
- Qual planta?  Para que? Tem uma folhinha para me dar?
Planta
Para que








E deu certo. As criaturas trouxeram os resultados e bastante material para o painel. Não só folhas, mas outras partes que as pessoas faziam uso. Até saquinhos de chá (daqueles prontos que vendem em supermercados) as criaturas trouxeram.Um aluno fez algo bem interessante: um vídeo com a entrevista. Muito criativo.
Tabulei os dados com as plantas e para que cada uma servia. Somei quantas pessoas citaram cada planta e os usos que cada um citou. Achei legal. Alunos e alunas gostaram dos resultados.
Abaixo vai parte dos resultados obtidos.
Planta
Quantas vezes
Usos
Boldo
13
problema no estomago, dor de estômago, dor de cabeça, dor de barriga, estômago, intestino, nervos
Cidreira
10
Calmante, dormir, dor de barriga, dor de estômago, problemas estomacais
Sambacaitá
10
Inflamação, gripe, febre, dor nos ossos
Manjericão
6
Gripe, soltar catarro, dores de garganta
Capim santo
5
dor de estômago, dor de barriga, calmante
Hortelã
5
gripe, tosse e garganta
Erva doce
4
digestão, gases, dor de barriga, Problemas respiratórios, como asma e bronquite
Quebra-pedra
4
dor e inflamação, rins e azia, pedra no rim
Aroeira
3
Febre, inflamação, ferida
Camomila
3
acalma os nervos, para o intestino, enjoo
Hortelã miúdo
3
Verme,
Sete dores
3
Dores musculares

Até aqui estava tudo no meu planejamento de aula.Uma introdução ao estudo das plantas. Mas aí um colega lembrou que a Feira das Ciências deveria acontecer em menos de um mês. Não tinha preparado nada. Então achei que as criaturinhas podiam apresentar o resultado da pesquisa deles/as.
E assim fizemos. Preparamos até gráficos. E como fiquei trabalhando em conjunto com o professor de História, ele fez algo com os resultados que me chamou atenção. Inverteu o que eu fiz. Eu, Bióloga, priorizei as plantas. Ele organizou os resultados pelos usos. Ficou muito bom.

Mas o que me chamou atenção foi o comentário de uma aluna que estava apresentando o trabalho na Feira. No final, quando estávamos guardando o material, ela disse: "Professora, eu gostei muito de apresentar esse trabalho. Porque fui eu que fiz. Não tive que falar o que os outros fizeram."
Falar o que fez, mostrar o resultado do trabalho dela foi marcante. Para ela e para mim.

Fazemos as atividades de forma a atender um objetivo simples, direto. Mas às vezes alcançamos bem mais do que sequer poderíamos imaginar.

Vacilei

Durante esses 28 anos de magistério tive alguns alunos especias. Surdos (ou parcialmente surdos), sem partes do corpo (ou com algum problema motor). Ano passado tive alguns alunos especiais. Um deles me chamava atenção. Tinha um tempo diferente mas aprendia. Pelo que entendi a mãe dava bastante reforço em casa. Um doce menino grande.
Nessa escola temos pessoas espacializadas para acompanhar nossos alunos e alunas especiais. Esse atendimento é feito em turno contrário em uma "salinha".
Alguns desses alunos e alunas fazem prova na "salinha", com a orientadora.
Já acostumada com a rotina, no dia da minha prova entreguei a mesma ao meu aluno especial. Ele me disse então, que "a tia da salinha não veio". Aí ele disse que a "Tia da salinha" só lia a prova para ele, mas ele respondia. Eu disse que podia ler. Depois que a turma estivesse acomodada fazendo a prova.
Arrumei alunos e alunas, entreguei a prova e sentei na minha mesa, com o aluno do lado. Li a primeira pergunta. O aluno nem piscou, respondeu "na lata" e em voz alta. Toda a sala ouviu a resposta dele (que estava correta), e eu fiquei sem reação. Aí disse ao meu aluno que ele faria a prova outro dia, com a "tia da salinha", porque não daria certo ele falar as respostas naquele momento (ia dar cola para todo mundo, kkkk).
Nessa hora entendi porque ele precisava fazer a prova separado dos demais: ele respondia em voz alta, e só depois escrevia.
Ou seja, quando ele dava a resposta em voz alta estava dizendo para a turma toda. Uma cola autorizada por mim. Nem pensar.

Percebi que nesse caso "vacilei" ao deixar o aluno 'responder' a pergunta. Não me ocorreu que ele faria isso em voz alta. Erro meu, não dele.

Outro dia ele levou a prova e fez na "Salinha". Mais seguro. kkkk


Atrás da porta

No primeiro ano que lecionei na quinta escola, aconteceram fatos que me chamaram a atenção.

Um deles aconteceu quando estava saindo da sala de um 6º ano. Percebi que um aluninho estava escondido atrás da porta. Chamei ele e perguntei o que estava fazendo escondido ali. A criaturinha, na maior inocência me diz: "É que eu vou dar um susto no professor João" (nome fictício, nunca tive um colega com nome João). Me disse isso com o maior sorriso no rostinho. Inocência pura. Queria brincar com o professor. Se sentia à vontade para fazer essa brincadeira.

Mas eu estava preocupada. O professor João era hipertenso. Fiquei pensando enquanto olhava para aquele sorriso, se deveria tentar explicar isso aquele menino. Achei melhor não.

Saí da sala pensando em procurar o tal professor e contar que tinha uma criaturinha atrás da porta. E achei ele no caminho para a sala de aula. Puxei ele para um lado (para que ninguém ouvisse) e expliquei que nosso aluninho estava atrás da porta para dar um susto nele. O professor entendeu na hora e disse: "Não se preocupe, vou tomar um susto daqueles." E saiu rindo.

Alguns dias depois, entrando nessa turma, perguntei ao menino se tinha dado o susto no professor. A criaturinha abre o sorriso e diz: "Dei sim, professora! Ele tomou um susto!! Foi bem engraçado!"

Todos satisfeitos, felizes. Entender que criança brinca, que não faz certas coisas com o intuito de prejudicar ninguém, é importante. Esse professor, melhor que eu, entendeu e entrou na brincadeira.

Nem sempre as coisas funcionam tão bem. Mas nesse caso deu supercerto!!

Agora a quinta escola

Mudei, gente!! E faz mais de 2 anos. Mas só agora voltei a escrever. A vida estava meio atrapalhada.

Voltando à mudança...

Embora amasse de paixão a escola anterior (aquela que alagava) precisei sair. Coisas esquisitas começaram a acontecer. Tentei resistir, mas optei por manter minha saúde. Do jeito que as coisas estavam eu nem era mais eu. Não ria, vivia estressada. As coisas que aconteciam estavam me deixando ansiosa, com insônia (e olha que durmo MUITO bem, sou boa de cama, deito e durmo! kkkk). Então pedi remoção e mudei. Escola nova, mas ainda na periferia (e perto da anterior, mas mais longe da minha casa). Tudo bem.

Só que essa escola é diferente. Me chamou atenção que alguns alunos trans conviviam bem com os colegas. Não é o paraíso. Mas tem muita coisa legal. E algumas tristes.

Mas vou começar contando que uma semana depois que começaram as aulas quebrei o pé. Em casa. Virou e escutei um "croc". Aí pensei: "Pronto, quebrou. Ficou 'crocante'. "
Vou para a Urgência, tiro raioX e tá lá o pé quebrado. Engessou. E fiquei de licença médica por 50 dias.
Vcs sabem o que são 50 dias em casa? Tava para ficar doidinha. Inventei de fazer crochê. Foi a salvação. Fiz até uma manta para o sofá!

Depois voltei para a escola. E terminei o ano como deu. Ainda não era eu. Mas estava melhorando.
Já ria em sala. Brincava.
E meus anjos do 6º ano aprontando cada uma...
Mas isso conto depois.

Mimeógrafo


Trabalhar em uma escola da periferia de Aracaju não é fácil. Faltava tudo. Desde giz (isso a mais ou menos 20 anos atrás, década de 90 do século XX, para ser mais clara) até papel para prova.

Para os(as) professores(as)mais novos o que vou contar pode parecer coisa de outro mundo, irreal. Mas era tão comum...

Nossas provas (e qualquer atividade que passássemos na escola) não eram xerocopiados. A gente usava o mimeógrafo à àlcool (tinha um à tinta, que eu só vi na segunda escola na qual trabalhei). Mesmo comunicados aos pais eram mimeografados. Xerox era luxo. E muito caro...

Sabem o que é mimeografar um texto ou desenho? É pegar uma folha de stencil (com uma tinta roxa que deixava nossas mãos arroxeadas por dias) escrever na parte própria para tanto e levar essa parte que foi escrita para o mimeógrafo. Aí a gente rodava uma manivela e ia colocando papel ofício no mimeógrafo. No mimeógrafo tinha um lugar para colocar o álcool. O álcool servia para que a tinta que estava no stencil passasse para o papel ofício. Quando a gente rodava a manivela, o papel entrava por um lado, rodava no cilindro onde estava a matriz (stencil escrito) e saía do outro lado com a cópia do que estava na matriz. Achei na net um vídeo que pode explicar melhor...
https://www.youtube.com/watch?v=cHHW95JSH5E

Mas como eu disse a escola nessa época era pobre. MUITO pobre. A gente precisava economizar stencil, que era caro. Aí aproveitávamos todo o pedacinho de stencil. Usávamos um mais de uma vez. Aprendi com minhas colegas dessa escola que a folha que vem no meio do stencil (para evitar que o carbono do stencil se danificasse) era ótima para escrever novamente. Pq a folha apropriada a gente usava uma vez, escrevia nela e usava para tirar as cópias que queríamos. Mas qdo precisávamos de mais folhas, aí a coisa enrolava. A direção da escola racionava o stencil. Então, para 'multiplicar os pães' (nesse caso as folhas de stencil) nós usávamos um mesmo carbono mais de uma vez...

Perguntei hj a uma colega se ela chegou a usar essa folha intermediária do stencil para 'aproveitar' o carbono. Ela confirmou. Pobreza generalizada. Era uma época na qual a escola não recebia os recursos direto do governo federal, como hj em dia. O dinheiro vinha para a secretaria de educação e lá eles compravam o que queriam e na quantidade que achavam certo. O que nem sempre atendia às reais necessidades da escola.

Outra coisa que aprendi sobre mimeógrafos: a gente podia 'raspar' com uma lâmina de gilete a parte de trás do stencil qdo errássemos algo. Não ficava muito bom, mas era melhor que riscar ou copiar tudo de novo, até pq não havia stencil para isso...