Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

Meu anjo rebelde e o preconceito

 Final de semestre e eu correndo para terminar as revisões. As provas seriam na semana seguinte e eu ainda tinha muita coisa para revisar...

Mesmo 'esbaforida', quando entrei na sala de aula de uma turma de 6ª série (atual 7º ano)  naquele dia, percebi um clima diferente. Alunos e alunas pareciam mais agitados que o normal, e aquele menino que gostava de brincar e tinha dificuldades em ficar sentado na cadeira, estava sentado e encolhido em um canto.

Perguntei se estava bem, afinal ele estava quieto, diferente do seu comportamento habitual (Só eu mesma para me incomodar com aluno quieto, mas a criatura NUNCA ficava quieta, só podia estar doente). Ele me disse que estava bem; e eu fingi aceitar. Mas já pensando em conversar com a criatura depois que copiasse um exercício de revisão para a turma.

Comecei a escrever as questões no quadro e, de repente ouço a palavra que eu nunca esperaria escutar nessa turma: “viado!”. Seguiram-se outros impropérios do mesmo tipo, vindo de diversos colegas. O tom de voz não deixava dúvidas que era uma agressão. E eu sabia a quem ela era dirigida. Àquele aluno que estava diferente, quieto. Ele nunca foi quieto. 

Desde o primeiro dia de aula eu sabia que ele gostava de brincar e provocar colegas e professores: afinal, não é todo dia que vemos um aluno com uma faixa colorida amarrada na cabeça. Não dava para deixar de prestar atenção nele.  A cada aula, esse menino aparecia com acessórios diferentes naquele cabelo. Um cabelo curto, que ele insistia em colocar para cima com gel. Eram prendedores de cabelo de diversos tipos: ‘tererês’, ‘xuxinhas’, tudo o que ele conseguisse pegar emprestado com as colegas.

Porém, o que mais me chamava a atenção não era esse menino, era a turma. Geralmente, quando um aluno faz qualquer ‘brincadeira’ com adereços considerados femininos é taxado de homossexual pelos colegas, mas isso não acontecia naquela turma. Por quê? Fui conversar com a coordenadora da escola e ela me esclareceu: essa turma estava junta desde a 3ª série e o menino em questão sempre fez essas brincadeiras, era só para provocar. Os colegas acostumaram e por isso nunca falaram nada. Até aquele dia.

Mas o que fez a turma mudar de atitude em relação ao colega? Pedi calma, e perguntei aos meninos (eram eles que estavam agredindo o colega) o motivo daquelas palavras, já que ele estava como sempre esteve: com um prendedor de cabelo no meio da cabeça. Nesse dia específico esse prendedor era rosa choque. Mas e daí?

Eles me responderam que um adulto disse em sala, referindo-se ao menino com o prendedor rosa choque, a seguinte frase: “Essa Coca é Fanta”. Pronto. Estava tudo claro. Essa frase foi entendida pelos alunos como uma ‘cobrança’: eles estavam aceitando como colega e amigo, um ‘gay’. Ele não era ‘Coca’ como eles, era ‘Fanta’, ou seja, homossexual. Pelo menos foi assim que os alunos entenderam. E se sentiram na obrigação de mostrar que não aceitavam esse comportamento não heterossexual por parte do colega. Pelo que entendi, os meninos dessa turma sentiram que precisavam deixar claro para os demais colegas (de outras turmas) que eles, os meninos daquela turma, não eram como ele, por isso expressaram agressões.

Uma frase foi o estopim para injúrias contra o menino. Ele ficou acuado no canto da sala, quietinho, mas sem tirar o prendedor do meio da cabeça(a tia ficou com tanto orgulho da força daquela criança! Mesmo sofrendo as agressões não abriu mão do adereço.). Talvez estivesse com medo de ser agredido fisicamente, e assustado com sua turma. Eu estava assustada, pois nunca havia presenciado tamanha hostilidade em sala de aula.

E estava furiosa!!!! Se a pessoa que disse a tal frase na sala de aula passasse na minha frente acho que não ia ser bonito de se ver... Afinal, como alguém fala uma frase dessas em sala? Primeiro procurei me  recompor, tentar me acalmar e então comecei uma conversa com a turma. Não que tenha funcionado muito, mas tentei. Ah, a tal revisão foi para o espaço. Quem é que ia conseguir explicar qualquer coisa no meio desse furacão de preconceito que estava arrasando a turma?

Quando saí da sala de aula fui direto para a direção da escola e expliquei o acontecido. Deixei claro que estava FURIOSA. Pedi que a diretora tomasse providências. Sei que ela conversou com a pessoa que disse a fatídica frase. Pq essa pessoa nunca mais falou (mesmo em tom de brincadeira, como fazia conosco, adultos e adultas) qualquer coisa relacionada a 'Coca' ou 'Fanta'. 

Mas essa frase deixou consequências. O menino que gostava de brincar com adereços voltou para a escola 'comportado'. Terminou o semestre sem a alegria que eu via em seu rostinho quando me recebia na porta da sala com os adereços de cabelo. Terminou quieto. Eu cheguei a perguntar se ele deixou de usar os enfeites no cabelo por causa da reação dos colegas. Ele me confirmou. Disse que conversou com a mãe e ela disse que seria melhor ele não brincar mais. Para evitar represálias. Entendi a posição da mãe. Mas fiquei triste. 

Como disse era final de semestre e nas férias procurei me preparar discutir a necessidade  de cobrar qualquer tipo de comportamento do outro apenas por ter determinado sexo biológico. Nunca entendi essa necessidade. Talvez porque eu, enquanto criança era uma menina-moleque. Ou, como diria meu pai, 'um machinho de primeira'.kkkkk
Hoje percebo que meu pai e minha mãe nunca nos forçaram a determinados comportamentos esperados para mim por ser menina. Não gostava de brincar de boneca ou qualquer brincadeira que me deixasse parada. Eu amava correr, pular, brincar de corda, amarelinha, roda, bola de gude, empinar pipa, e ... futebol. Jogava junto com as demais crianças (meninos). E estava tudo certo. Nunca fui reprimida por brincar de coisas que eram percebidas como 'coisas de menino'. 

Mas voltando ao início das aulas: me preparei e no primeiro dia de aula procurei entender (sem a raiva que estava antes) os motivos da agressão ao colega (que saiu da escola assim que terminou as provas). As respostas me deixaram impressionada. Os alunos (aqueles que agrediram verbalmente o colega) me disseram que não acreditavam realmente que o menino dos adereços no cabelo fosse gay. Mas... "aquele não era um comportamento de homem". Esse foi o motivo real da agressão. O comportamento esperado para o sexo masculino não incluía adereços no cabelo. Triste... 

Perguntei então se eles já tinham assistido filmes de piratas. Disseram que sim. Perguntei se acreditavam que o comportamento dos piratas era 'de homem'. Também sim. Aí perguntei como era o cabelo dos piratas. Cortado? Curto? Ou era um cabelo grande preso ou trançado? Ficaram calados. 
Acredito que de alguma forma os fiz pensar. Depois fui explicando que os comportamentos esperados para homens e mulheres mudam ao longo do tempo (e a depender do lugar). Um dos exemplos que dei foi o kilt. 

Não sei se o que falei, ou como abordei o tema ajudou. Isso só o tempo pode dizer. Mas espero ter plantado um a sementinha. E quem sabe essa sementinha pode trazer frutos lindos no futuro? Eu só posso ter esperança. E é essa esperança que me move. Que um dia as pessoas possa  questionar as normas engessantes que a sociedade prega. E que isso possa produzir pessoas mais livres e felizes.