Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

Desculpa Kátia, mas tenho que discordar de você agora.



Escrevi aqui, a algum tempo atrás, que minha amiga Kátia Carmo me disse que precisa “ser um(a) professor(a) muito ruim para 'estragar' as aulas de Biologia. Pq a Biologia tem tudo de bom...” 



Só que depois de ler livros didáticos com conceitos/ informações (inclusive subliminares) erradas; depois de assistir algumas pessoas que tem diploma de biologia e fazem vídeos com imprecisões que eu não aceitaria em meus alunos, fico na dúvida se Kátia está certa. 

Tudo bem, sei que não sou o máximo como professora. Tento dar meu melhor, mas sei que erro. Aqui no blog já admiti diversos momentos nos quais eu fiz bobagem. Mas uma coisa é fazer bobagem, por ter informação errada, incompleta. Outra coisa bem diferente é repassar a informação de modo tal que sirva para justificar o injustificável. 

Vamos começar com coisas mais antigas: os livros didáticos. 

Como é que uma criatura se dispõe a escrever um livro falando da diferença de pensamento entre Darwin e Lamarck, dizendo que o primeiro não acreditava na Herança das características adquiridas? Essa criatura que escreveu o livro sequer se deu ao trabalho de ler “A origem das espécies” de Darwin!!
Pq se tivesse olhado veria que Darwin, no capítulo V, fala claramente que concorda com a ideia de transmissão das características adquiridas. Mas seguindo esses livros didáticos com erros (acredito que pelo menos metade deles tem esse erro), muitos professores (que como eu tiveram pouquíssimas aulas sobre evolução) vão dar informação incorreta aos alunos e alunas. E para piorar, alguns desses livros tem uma forma bem interessante de passar a informação. Ou seja, tem uma abordagem clara para passar informações erradas. Uma verdadeira bomba, como diria uma amiga, a Helen. 

Outra tema que eu acho bem complicado, embora aparentemente seja abordado corretamente, é o do 3 R’s (Reduzir, Reutilizar, Reciclar). Para ser gentil, eu diria que alguns livros tem abordagem, no mínimo, ambígua. Eles informam que o mais importante dos três é a Redução de consumo. Perfeito, é isso mesmo: primeiro Reduzir, depois Reutilizar e por último (só se não der mesmo para Reduzir e Reutilizar) é que devemos pensar em Reciclar. Mas de forma estranha, pelo menos para mim, mesmo dizendo essa escala de importância, os livros escrevem apenas um parágrafo de poucas linhas sobre Redução de consumo e Reutilização. Mas dedicam páginas inteiras exaltando a Reciclagem. 

Aí eu pergunto: a criança depois de ler uma frase que informa ser melhor Reduzir o consumo, um parágrafo sobre Redução e Reutilização, e segue o texto com pelo menos uma página inteira falando da Reciclagem (como fazer, como separar os materiais, cores de lixeira para cada tipo de material, benefícios da Reciclagem para o ambiente, para as pessoas que sobrevivem disso[1]), vai lembrar que é mais importante Reduzir?
Sério que alguém acredita que vamos sequer lembrar que existe algo como “Redução de consumo” depois de sermos bombardeados com informações maravilhosas sobre a Reciclagem? E o que é melhor, se reciclarmos não precisamos mudar hábitos de consumo. Vamos consumir produtos que podem ser reciclados. Podem. Mas sejamos honestos, na maioria das vezes não são. E um livro didático, que deveria ajudar na formação de crianças, faz o papel do capital, insistindo na proposta da Reciclagem, em detrimento do que é realmente mais benéfico para o ambiente, a Redução de consumo. Triste. Não li um único livro de Ciências que reforce a Redução de consumo[2]. Parece até pecado incentivar isso. E do jeito que as coisas vão, não duvido nada que seja proibido, do mesmo jeito que querem proibir a discussão de gênero nas escolas. Povo doido. 

Bem, agora vamos para um terreno que me deixa angustiada: os vídeos na internet. 
Eu até não ligo muito para os terraplanistas, movimento antivacina, coisas assim. São leigos, que acreditam em coisas que querem. E se alguém acredita em quem não tem nenhuma formação na área, é porque quer acreditar. Minha parte eu faço: vou para sala de aula e explico a meus anjos como tudo funciona. E nunca tive problemas com isso. Sempre entenderam a importância da vacinação e que nosso planeta não é plano. 

Mas qdo a criatura que fala uma coisa ruim, daquelas de doer na alma, é graduada em biologia? Aí não dá. Eu fico furiosa. 
Eu sei que ter a informação não tira as ideias pré-concebidas de ninguém. Racistas podem ter toda a informação que o sangue de negros e brancos é igual, que a informação genética é a mesma, mas continuarão racistas. Alguns preferirão morrer a receber o sangue de um negro. Porque acreditam, mesmo contra toda evidência científica, que seu sangue é mais puro. O seu olho mais azul,... 

Vale o mesmo para homofóbicos. Preferem torcer toda a informação para que caiba dentro do seu modo de pensar. Triste isso.
Me lembra um aluno, que em sala disse “para mim, homem que usa rosa é ‘boiola’!” A turma discordou dele em peso (amei isso), argumentaram de diversos ângulos. E o menino resistindo, mantendo o ponto de vista. Não conseguindo contra argumentar com os fatos listados pelo resto da turma (tem muito gay que não usa rosa, tem muito homem hetero usando rosa,...), o menino saiu com o argumento emocional “eu penso assim porque meu pai também pensa assim”. Aí eu entrei e disse que ele tinha direito de seguir as ideias do pai, mas que o pai era de outra geração, com ideias que necessariamente não eram mais bem vistas na atualidade. E que ele era de uma geração mais nova. Que devia pensar bem e ver se esse pensamento era realmente algo que ele acreditava que valia a pena ser mantido, já que não se sustentava por nenhum argumento lógico. 

Bem, mas voltando a pessoa com diploma de biologia: ela diz que o DNA tem toda a informação genética. É verdade, mas esquece que genética não é determinismo. Uma pessoa pode ter a informação genética para crescer até 1,70 m. Mas crescer até 1,60. Porque o gene depende do ambiente. Já vi isso acontecer em gêmeos idênticos, meus alunos. No 6º ano as criaturas eram iguais. Eu não conseguia diferenciar um do outro. Não pelo rosto ou altura. Só percebia a diferença no comportamento. Um era mais agitado, o outro mais calmo. No 8º ano (não lecionei na turma deles no 7º ano) o rosto continuava idêntico. Mas a altura era bem diferente. Pelos menos 10 cm de diferença. Todo mundo sabia diferenciar os meninos. Pq era uma diferença gritante. 

Mas se eles eram gêmeos idênticos (mesma informação genética) por que um cresceu mais que o outro? Porque o ambiente atuou. Ignorar as relações entre genes e ambiente é no mínimo, falta de visão. É não enxergar a vida como ela se apresenta, porque ela não cabe na minha forma de entender o mundo. Mas... 

Outra coisa que essa pessoa com diploma de biologia diz: que a determinação do sexo biológico está no cromossomo sexual Y. Que se uma pessoa tiver cromossomo sexual XX ela será fêmea, se for XY será macho. Ela até comenta sobre o gene SRY, mas não vi uma conclusão sobre ele.
Ela não diz, por exemplo, algo como o que tem  nessa informação científica: “A princípio, acreditava-se que o cromossomo Y fosse necessário e suficiente para a determinação do testículo, mas logo a experiência clínica incumbiu-se de mostrar situações em que, apesar do Y, o testículo não se desenvolvia (mulher XY). Por outro lado, sua ausência não impedia o desenvolvimento testicular (homem XX).” 
(https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-27302000000300010) 

Ou seja, existem pessoas que mesmo tendo o cromossomo XX, possuem pênis. E agora, qual sexo considerar? Cortar o pênis, por que a pessoa é geneticamente fêmea? 
Depois de falar do SRY, essa pessoa com diploma de biologia discorre sobre ‘mutações’. Fala de Síndrome de Turner, Klinefelter,... E diz que ‘se algo é mutante ele vai nascer biologicamente com defeito’. 
Sério que ela diz isso? Ela sabe que o olho azul é produto de mutação? (https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Biologia/noticia/2015/02/todas-pessoas-com-olhos-azuis-descendem-de-um-unico-ser-humano.html

Pela lógica dessa pessoa com diploma de biologia (se fosse minha aluna do ensino médio tava reprovada!) as pessoas com olhos azuis tem ‘defeito biológico’. Será? 

Outro ponto de discordância (tem muita coisa esquisita que essa pessoa diz sobre aspectos da biologia) é quando ela diz que pessoas hermafroditas não ‘tem filhos’. Mas esse artigo científico (https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-27302005000100009) diz que é sim, possível que hermafroditas verdadeiros sejam pessoas férteis. 

“Chama a atenção, sob este aspecto, o caso descrito na literatura de uma senhora de 52 anos de idade que, ao ter seu nono filho, foi submetida a histerectomia e salpingo-ooforectomia bilateral devido a um cistadenoma mucinoso no ovário direito. A gônada esquerda foi explorada e, para surpresa da equipe médica, consistia de tecido ovariano e testicular (ovotéstis), configurando um Hermafroditismo Verdadeiro (HV). Há ainda o relato de um caso de HV criado no sexo masculino, com genitália externa normal e fertilidade comprovada.” 

Mesmo que a literatura médica encontre poucos casos de pessoas hermafroditas férteis, isso não quer dizer que não existam em maior quantidade. A senhora que teve 9 filhos só descobriu o hermafroditismo porque precisou fazer uma cirurgia. Se ela não fizesse essa cirurgia, nunca saberíamos que uma mulher que teve nove filhos era hermafrodita. Quantas pessoas podem ter a mesma condição e não terem sido descobertas? 

Acho que dá para perceber como algumas pessoas (graduadas em biologia) estão usando essa ciência: seja passando informações subliminares sobre temas que deveriam ser tratados de forma mais consciente, como no caso dos 3 R’s e diferenças de pensamento evolutivo; seja repassando ideias erradas: se tem cromossomo sexual Y vai ser macho (nem sempre), que mutação é algo necessariamente ruim (não é!), ou que Hermafrodita não tem filhos (tem sim!). 

A biologia já foi muito utilizada para fins execráveis: dar voz e vez ao racismo, ao machismo, à eugenia,... Não precisamos acrescentar tantas abordagens problemáticas à lista de erros que essa ciência já referendou. Acho que está mais do que na hora de falarmos sobre esses erros. Não podemos nos omitir mais, senão corremos o risco de ficarmos mudos. 

Precisamos de mais profissionais éticos. Que se disponham a estudar e repassar, sem erros ou enviesamentos, aquilo que é tido como correto pela biologia atual. Pelo menos se tem a intenção de usar essa biologia como reforço para o que está explicando. 

De que adianta falar dos 3 R’s, dizer que é mais importante Reduzir, e só exemplificar a Reciclagem? Serve a quem esse discurso? Layrargues é bem claro sobre isso. 

Também não deveria ter que explicar a alguém que estudou os princípios biológicos, que a maioria das mutações não causa nenhum efeito no organismo, pode até ser benéfica (https://www.humanasaude.com.br/noticias/4-mutacoes-beneficas-que-estao-ocorrendo-em-humanos-agora-mesmo,43109). 

Ou que apresentar o cromossomo sexual Y não dá certeza que a pessoa vai nascer com pênis. Pode nascer com vagina. E isso não é nenhuma anormalidade. É uma condição do organismo. 

Por fim (é estou terminando!) eu não deveria ter que me preocupar em explicar a meus alunos e alunas que existem pessoas que escrevem/falam sem estudar. Que existem pessoas que não tem vergonha de fazer livros/ vídeos que trazem informações, no mínimo incompletas. Que meus anjos devem ter cuidado e não acreditar em tudo que leem/ouvem. Nem mesmo de pessoas graduadas em biologia. 

Isso é triste, muito triste. Vergonhoso. 

Por isso escrevi sobre essas pessoas que fazem coisas tão feias usando o nome da minha Biologia. 

Sei que não sou ninguém, sou só uma professorinha. Mas tenho obrigação profissional de alertar sobre alguns profissionais que não tem o devido cuidado com o que escrevem ou falam. E, para mim, essas pessoas precisam mudar, estudar, ter mais cuidado com suas palavras. 
Porque como professores biólogos temos responsabilidade com alunos a alunas que nos leem/ escutam. Precisamos pensar muito sobre cada palavra, cada texto. Não podemos nos comportar sem o devido cuidado ético. Sem o cuidado com as pessoas que vão ler/ouvir nossas palavras. Palavras podem ferir. Ofender. Magoar. Imagino como a biologia que referendou o racismo foi objeto de dor para muitas pessoas negras. 

Não me tornei professora para seguir esse caminho de utilitarismo dos poderosos que pretendem uma homogeneização de comportamentos e ideias. Sou professora de biologia para ajudar a mostrar que na diversidade (genética e comportamental) podemos ter resposta a muitos dos nossos problemas. Precisamos enquanto professores e professoras contribuir para tornar o mundo um lugar mais humano, com mais empatia e respeito. 

[1]Quem puder, leia esse texto (http://ambiental.adv.br/ufvjm/ea2012-1reciclagem.pdf) de Philippe Layrargues (O cinismo da reciclagem) no qual ele desvela as falácias que envolvem a incorporação da Reciclagem ao discurso que quer se mostrar ‘ecologicamente correto’ sem abrir mão do consumismo.
[2] Texto de um artigo que apresentei no Epenn com a análise de uma coleção de livros didáticos de Ciências https://1drv.ms/b/s!As7KhXgHzOY7gYov7PmVt-Bo4pkLbQ?e=y27sH3