Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

Minha Biologia

Antes do texto sobre a "Minha Biologia" vou explicar por que escrevi essa postagem. Coisas de um amigo, o Rogério Junqueira, ele me pediu que eu escrevesse sobre essa minha visão biológica que ele não conhecia bem. Tanto me atormentou que eu escrevi. Mas não um artigo científico, como ele queria. Mas um textinho para esse blog.

Só que eu esqueci que tinha escrito o texto. Mandei para o Rogério e esqueci mesmo. Aí, conversando com a Ângela Maria Freire sobre um caso de homofobia/ transfobia no qual a dita cuja senhora que profere palavras preconceituosas e absurdamente ofensivas usa a biologia como desculpa, lembrei do textinho. Mandei para a Ângela e ela pediu que eu publicasse logo. Publiquei, mas agora coloquei esse textinho aqui para contar como tudo aconteceu.

bjs amores!



Sou bióloga. Com muito orgulho. Amo a Biologia. Não apenas por defender organismos não humanos. Mas por tudo que dela me fez uma pessoa melhor.

Vejo diversas críticas ao pensamento biológico. Não me identifico com essas críticas. A minha Biologia não é essa que vejo tantos falarem: reducionista, preconceituosa, eugenista. A minha Biologia é bela, ama e defende a diversidade. Procura desmistificar a ideia que seres humanos são superiores aos não humanos. Para a minha Biologia, todos somos tripulantes de um mesmo planeta. 

E nesse planeta, a espécie humana ainda está na infância da compreensão. Seu tão propagado intelecto não consegue fazer com que trabalhemos juntos para o bem de todos. Nós humanos não entendemos que a intrincada teia da vida nos faz codependentes uns dos outros. Dependemos de outros da nossa espécie para sobreviver, mas também dependemos de outros organismos para que nossa existência seja possível. Precisamos no mínimo que plantas façam fotossíntese e nos deem o alimento que produziram. Sim, amores, nós não produzimos alimentos. Nos cultivamos. Sem sol, sem seres fotossintetizantes, não teríamos como cultivar nenhum alimento. Nem teríamos oxigênio que é tão necessário à nossa vida. E nós nos achamos a espécie mais importante do planeta. Ledo engano. 

Minha Biologia diz isso. Que nós além de não sermos o máximo, como gostamos de pensar, ainda agimos de forma muito imprudente. Fazemos coisas que podem extinguir a vida no planeta. Bombas nucleares, poluição, matança de outros organismos por puro prazer. Onde está a inteligência em fazer tais coisas? Onde nos mostramos superiores à uma gorila que mesmo presa dentro de uma jaula em um zoológico, salva uma criança? Frans de Wall, primatólogo, descreve no livro “Eu, primata”, algumas situações como a que citei a pouco na qual primatas não humanos demonstram empatia. Como Wall diz “Devíamos ficar felizes com a possibilidade de a empatia ser parte da nossa herança primata, mas não temos o hábito de aceitar de bom grado nossa natureza. Quando pessoas cometem genocídio, nós as chamamos de ‘animais’. Mas quando fazem caridade nós as elogiamos por serem ‘humanas’.” (Wall, 2007, p. 13). E a gorila que salvou uma criança (filhote da espécie que a aprisionou em uma jaula), deve ser considerada ‘humana’? 

Minha Biologia acredita que assim como a gorila que demonstrou empatia por um ser de outra espécie, nós humanos também devemos ter empatia por todos, e não apenas pelos nossos semelhantes. Para minha Biologia não humanos também têm direito a existência digna. Zoológicos não deveriam existir. Não deveria ser aceitável que enjaulemos outras espécies apenas para nossa diversão. 

Somos uma espécie que ainda comete muitos erros. Um deles é acreditar, a despeito do que minha Biologia diz, que o ideal é termos uma homogeneidade de pensamentos e características. 

Para minha Biologia, a diversidade é o ideal. Sabemos que quanto mais diverso for nosso genoma, maiores as possibilidades de sobrevivência a mudanças. Se formos mais parecidos e ocorrer algum desastre natural (como uma pandemia) a tendência é entrarmos em extinção. Porque provavelmente as pequenas diferenças que apresentarmos não nos conferirá imunidade. Se somos muito parecidos, a doença que afeta um, afetará todos. Por isso a clonagem de um rebanho, por exemplo, é perigosa. Clonar a melhor vaca leiteira, aparentemente é ótimo. Vamos ter um rebanho inteiro de vacas semelhantes que produzem muito leite. Até que uma dessas vacas adoeça. Como são bem semelhantes, todas adoecem. A semelhança, ou homogeneidade não é algo que seja bem vista pela minha Biologia.

Como disse acima, minha Biologia não gosta da homogeneidade. Se para a sobrevivência, a variedade é essencial, por que alguns humanos procuram tanto a homogeneidade? Acho que não aprenderam nada com a minha biologia.

Diversidade genética, diversidade de cores, de paisagens, de seres vivos, de formas de amar. Se, como diz minha biologia, a diversidade é a chave para nos mantermos vivos, por que ainda tentamos normatizar comportamentos e formas de amar? Talvez porque nossa espécie gosta de controlar e julgar. Controlar corpos e mentes. Controlar afetos. E uma das formas de controlar é exercer o julgamento daqueles que se desviam da norma. Triste e pobre espécie humana. Porque não aprendemos com nossos primos bonobos? Minha Biologia mostra como essa espécie de primata lucra com o amor. Sexo é uma atividade frequente, independente da reprodução. Mas o ato sexual não ocorre apenas entre indivíduos de sexos diferentes (macho/fêmea). Bonobos fazem sexo com tudo e todos. Machos entre si, fêmeas e machos, fêmeas com fêmeas. A ato sexual, é uma forma de aliviar tensões, acabar com brigas, manter a paz. Obrigada por me ensinar sobre os bonobos, minha Biologia!!

Minha Biologia também me apresentou a alguns primatas que conseguem ser bem cruéis. Refinadamente cruéis. Frans de Wall descreve esse comportamento: “Como meninos que atiram pedras nos patos da lagoa, os grandes primatas às vezes infligem dor para divertir-se. Em uma brincadeira, chimpanzés jovens de laboratório atraíam galinhas com migalhas para perto de uma cerca. Toda vez que as crédulas galinhas se aproximavam, os chimpanzés batiam nelas com um pau ou as espetavam com um arame afiado. Esse ‘jogo de Tântalo’, do qual as galinhas eram estúpidas o bastante para participar [...] foi inventado pelos chimpanzés para espantar o tédio. Refinaram-no a ponto de um deles só jogar a isca e o outro bater.” (Wall, 2007, p.15).

Minha Biologia revela nosso parentesco com os demais primatas até em momentos como esse: jovens que procuram formas de crueldade para ‘espantar o tédio’. Quantas vezes já ouvi casos de jovens humanos que faziam algo perverso apenas como diversão? Um exemplo é o caso do índio Galdino, que teve o corpo queimado e veio a falecer porque jovens atearam fogo no mesmo “por divertimento”.

Podemos dizer que nossa espécie difere muito dos chimpanzés que maltratam as galinhas no quesito ‘crueldade’? Quantos exemplos de atitudes brutais nossa espécie coleciona? Genocídio, guerras, estupros estão entre nossas ‘perolas de crueldade’. Todos já ouvimos falar dos campos de concentração nazistas. Mas nosso dia a dia também está recheado de momentos de crueldade extrema: pais/ mães/ responsáveis que abusam sexualmente das crianças que deveriam proteger; homens e mulheres que matam por prazer; que tem quase um gozo quando percebem que o outro está sofrendo graças a alguma atitude sua. 

Minha Biologia mostra que não diferimos tanto assim dos nossos primos não humanos. Como diz Wall (2007, p. 16): “Somos capazes de tamanha selvageria apesar de nossa faculdade de imaginar o que os outros sentem, ou talvez precisamente porque a possuímos. Por outro lado, quando essa mesma faculdade combina-se com uma atitude positiva, impele-nos a mandar alimentos para os famintos, fazer corajosos esforços para salvar estranhos, como nos terremotos e incêndios, chorar quando ouvimos uma história triste ou participar de um grupo de busca se desaparece o filho de um vizinho. Com um lado cruel e um lado compassivo, é como se olhássemos o mundo com a cabeça de Jano: duas faces voltadas para sentidos opostos. Isso pode nos confundir a ponto de, às vezes, simplificarmos demais nossa identidade. Ora nos consideramos a ‘joia da criação’, ora os únicos vilões de verdade no mundo. Por que não aceitar que somos tanto uma coisa como outra?”

Minha Biologia diz que somos produto de milhares de anos de evolução biológica. E outros tantos milhares de aperfeiçoamento moral. Preconceitos que antes eram percebidos como corretos, passaram a ser vistos como errado. Como o caso do racismo. Sei que a biologia deu munição para ideias de superioridade de uma raça sobre outra. A tal eugenia é fruto podre da biologia. Triste ideia, resultados que serviam principalmente para justificar o injustificável. A biologia nesse momento foi serva fiel ao poder, deu ‘status’ de ‘evidência científica’ a algo que não devia sequer ser considerado como ideia plausível, que dirá fato científico. Tenho verdadeiro horror a termos como ‘evidência científica’ ou ‘cientificamente comprovado’. Comprovado por quem? Onde? Seguindo quais critérios? Não existem verdades absolutas na ciência. Pelo menos não na ciência biológica. Lembro que quando estava no terceiro período de graduação, uma professora falou sobre as sanguessugas. Que eram usadas antigamente como uma forma de tratamento. Mas que já não se fazia mais isso. Aí minha Biologia chega e mostra que as coisas mudam, e muito. Uns dois períodos depois fiquei sabendo que a ciência estava retomando o tratamento com sanguessugas. Que em alguns casos esse tratamento era mais eficiente. Verdades mudam.

Minha Biologia entende que não podemos viver endeusando a ciência. Ela tem limitações. E não é a única forma de conhecimento válido. Como lembram El-Hani e Machado (2020) a ideia de que o conhecimento científico era superior ao demais causou problemas. Esses autores citam o caso dos campos de arroz de Bali. Esses campos de arroz eram irrigados através de um sistema de gerenciado por templos hindu-budista dedicados a deusa do lago. Assim, esta forma de irrigação passou a ser vista como supersticiosa e, portanto, ‘não científica’. O governo, acreditando que apenas o conhecimento acadêmico tinha 'validade’, substituiu o sistema que possuía relação com religiosidade por outro, que tinham base técnico-científica (Revolução verde). Mas essa substituição foi um fracasso, pois a colheita de arroz diminuiu pela metade. Esses autores chamam atenção para o fato de que embora ainda existam atitudes anticientíficas (movimento Terra plana, antivacinas,...), é necessário reconhecer e valorizar a pluralidade de formas de conhecimento existentes. Essa é a forma que a minha Biologia pensa. E é essa forma e pensar que está presente na Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) e na Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD), que reconhecem a importância dos indígenas e do conhecimento local em conservação. (El-Hani e Machado, 2020).

Sei que a biologia, principalmente a que tem viés reducionista contribuiu para propagar ideias preconceituosas. Mas sei que essas ideias preconceituosas têm sido combatidas incessantemente por biólogos e biólogas que compreendem a complexidade das questões, procurando ver além do viés biológico. Para esses pesquisadores e pesquisadoras, temas como diversidade sexual, questões de gênero, ambientais ou mesmo aquelas relacionadas à saúde, não devem se ater apenas às informações que o biológico traz. 

Eles não acreditam, por exemplo, que a genética seja um fator determinante. Para esses biólogos e biólogas que, como eu, sabem que a minha Biologia é apenas o início de algo muito mais amplo, acreditar que um gene possa determinar radicalmente qualquer coisa é um pensamento que não acrescenta nada. Sim, eu sei que alguns genes provocam doenças que ainda não tem cura. Que até hoje testes genéticos podem dar a informação que muitos não gostariam de saber. Mas quem pode garantir que determinadas atitudes em um ambiente específico não possam atenuar os efeitos desse tipo de doença? A minha Biologia vê a cada dia pesquisas que procuram perceber formas de atenuar doenças ou até mesmo curá-las. 

Outra coisa que provavelmente já ouviram falar é que a biologia diz que ‘quem possui dois cromossomos sexuais X é mulher e quem tem um cromossomo sexual X e um Y é homem’. Minha Biologia diz além disso. Minha biologia é essa da imagem abaixo, com a Lisa Simpson. Ela explica que uma pessoa pode ter cromossomos sexuais XY, mas não ter pênis; ou ter dois cromossomos X e ter pênis. Ou pode ter pênis e se sentir mulher, e vice versa. Sim, a minha biologia mostra que pensar apenas nos cromossomos sexuais é uma visão limitada. E minha biologia não é limitada. Ela procura conhecer as diversas formas de existir inclusive sexualmente. E sabe que ela só traz uma pequena parte desse intrincado contexto, no qual cada apenas cada indivíduo pode dizer, o que é. 


(Fonte da imagem: Facebook da Ângela Maria Freire https://www.facebook.com/angelamaria.freire/posts/2207897805969752)


A evolução já foi utilizada para explicar a superioridade/inferioridade de um grupo humano em relação a outro. Foi o tal Darwinismo social. Como Ciência, a biologia não é neutra. As pessoas que abordam temas biológicos o fazem dentro de um conjunto de valores e ideias pessoais, que guardam relação com o momento que estão vivendo. E isso não os exime do erro. Mas, como aprendi com minha mãe, o erro é algo importante no processo da aprendizagem. E se quisermos realmente aprender, devemos estudar os erros para não os cometer novamente. 

Minha Biologia foi mal compreendida em alguns momentos. Em outras teve gente que realmente pensou a vida de forma pequena, reduzida. Esqueceu que vida é algo muito maior. Mas a biologia que aprendi na graduação e ao longo de quase 30 anos em sala de aula, me mostrou que sabemos muito pouco. Que a biologia é apenas uma peça no quebra-cabeça da vida. Amor, afetos, dores, alegrias, sucessos, lutas, cansaços, perseverança, fracassos, empatia, altruísmo, e tantos outras coisas também fazem parte da vida. Para entender um pouco mais o que é a vida, precisamos pensar em uma perspectiva bem maior que apenas o biológico. 

Minha Biologia sabe ser pequena. Mas fica feliz em ser pequena. Ela não acredita poder entender tudo. Ela acredita que pode começar a entender, mas sabe que precisa da ajuda de outras formas de pensar. Minha Biologia ama aprender. Entende que toda forma de conhecimento é válida. E segue procurando entender a vida. Seu objeto de conhecimento. Sabendo que por mais que aprenda, nunca será o suficiente. Porque para entender a vida, precisamos viver. Plenamente. 


Referências:

WAAL, Fraz de. Eu, primata: por que somos como somos. Companhia das letras, São Paulo, 2007.

EL-­HANI, Charbel N.; MACHADO, Virgílio Machado. COVID­19: The need of an integrated and critical view. Ethnobiology and Conservation, 2020, 9:18(18 May 2020)