Uma Introdução

Uma Introdução

Porque criar um blog sobre as coisas que eu presenciei e ouvi durante minha carreira como professora de Educação Básica?

Nunca achei que alguém se interessasse por coisas que para mim são comuns, o cotidiano de uma professorinha.

Mas um amigo (Joseph), pensa diferente. Ele achou que minhas histórias poderiam ser interessantes. E me incentivou a escrever um Blog.

Talvez ele tenha razão. Afinal, uma pessoa que está em sala de aula a mais ou menos 20 anos deve ter algumas histórias para contar. E posso dizer que minha vida de professora (e esse blog é só sobre isso) não foi nada calma. Monotonia nunca fez parte da minha vida profissional. Criança é um bichinho que inventa...

As histórias que vou contar aqui são variadas. Algumas aconteceram comigo, outras com amig@s e alun@s. Para preservar a identidade das pessoas que foram protagonistas das histórias, vou trocar não apenas os nomes, mas outras características (idade/sexo/lugar onde o fato ocorreu). Resumindo, vou contar as histórias, mas sem revelar dados que possam identificar as pessoas envolvidas. Conto o milagre, mas não digo o santo.

Convido vcs a lerem um pouco dessas minhas 'aventuras' como professora. Trabalhei (e trabalho) em escolas de bairros bem pobres, onde faltava quase tudo. Menos a boa vontade de colegas e diretores para fazer a coisa dar certo. Pelo menos na maioria das vezes.

Meu anjo trans e o anjo gay

Uma das coisas que me chamou atenção na quinta escola foi um menino (vou chamar de João, que é o nome de meu pai).

Assim que entrei na sala do 9º ano, dei de cara com João. Com cílios postiços lindíssimos, um batom bem discreto na boca, cheio de bijuterias. Tava lindo. Faço a chamada e como esperava, o nome no diário é o mesmo do Registro Civil: João. Observei se João demonstrava algum desconforto com seu nome. Não parecia se incomodar. Disse 'presente' e voltou a conversar com colegas que estavam próximos/as.

Fui observando com a turma se relacionava com João. Pareciam lidar bem com a forma de vestir de João. Não vou dizer que nunca percebi algumas 'gracinhas' ´por parte de colegas de outras turmas. Mas João lidava bem com isso. A depender do caso, nem respondia (dava o ombros, girava os calcanhares que estavam apoiados em um sapato alto e deixava a criatura preconceituosa falando só). Outras vezes dava alguma resposta, geralmente bem ácida. Com certeza João é uma pessoa bem resiliente.

Como não percebi nenhuma agressão a João que ele não pudesse lidar, nem nenhum desconforto, fiquei esperando o momento ideal para falar de transexualidade com a turma. Não queria chamar atenção sobre João, mas percebi que a turma (e aparentemente João também) confundiam homossexualidade com transexualidade. Achei que valeria a pena esclarecer, mas só se surgisse alguma oportunidade.
Um dia, estava falando de genética e perguntaram se 'homossexualidade é genética'. Disse que não existiam trabalhos comprovando  o componente genético na homossexualidade, mas existiam pesquisas, feitas com gêmeos criados separados no qual a percentagem de gêmeos homossexuais era maior que entre irmãos (não gêmeos, criados separados) que eram homossexuais, mas que isso era algo irrelevante. Não faria diferença saber se existia ou não um componente genético para a preferência sexual de uma pessoa. Que mesmo sendo um comportamento escolhido, toda escolha que não causasse prejuízos a outra pessoa deveria ser respeitada. Falei que se em um relacionamento (heterossexual ou homossexual), um dos parceiros agisse de forma desrespeitosa com o outro, isso sim deveria ser motivo de reprovação. Não a homossexualidade, a transexualidade, ou qualquer forma de vivenciar o amor. 

Aí aproveitei e expliquei que Homossexualidade refere-se a quem se deseja, já a transexualidade está relacionada ao corpo. A como a pessoa se sente. Pode ter nascido em um corpo com pênis (ou ter seios), mas não se sentir confortável com essa parte do corpo. Para isso existem pessoas que querem fazer a cirurgia de mudança de sexo. Outras pessoas (travestis, drag queens, e mesmo alguns transexuais) não se interessam pela cirurgia. Alguns até mesmo se sentem confortáveis com o pênis ou com os seios. Cada pessoa é única, não dá para querer que ela funcione de determinada forma. Só para que ela caiba na caixinha. Expliquei que pode ser transsexual, e ser heterossexual. Que mesmo quem quer mudar o corpo, pode ter desejo por alguém do sexo biológico diferente do dela. percebi que as cabecinhas estavam dando 'nós'... Mas fui explicando aos poucos e acredito que entenderam.
Foi uma aula bem legal. Estava toda preparada na minha cabeça. Esperando a oportunidade. E quando ela veio, pude fazer algo bem interessante.

Ah, descobri que João era 'baliza' da Banda da escola. Fazia o maior sucesso. Já vi João ajudando os meninos de um grupo de HipHop com a coreografia.

Tudo me fez crer que João tinha seu espaço. Conquistado provavelmente a duras penas, com bastante esforço. Mas ele era feliz. O importante era isso.

Mas uma coisa estava me incomodando: precisava saber se realmente João não se incomodava com o nome. Mas não queria perguntar na frente da turma. Então esperei uma oportunidade. E ela apareceu em um dia que João terminou a prova por último. Quando ele me entregou a prova, perguntei se podia fazer uma pergunta mais pessoal. Ele disse que sim, e expliquei que se não soubesse ou não se sentisse confortável, não precisava responder, mas que era algo que eu precisava perguntar. João concordou, e eu perguntei se ele se incomodava de ser chamado por um nome masculino. João disse que não, me olhou de uma forma muito carinhosa e percebi que ele gostou que eu tivesse mostrado sensibilidade a seu jeito de ser. Disse então que gosta do nome João. E que nunca pensou em ser tratado por um nome feminino. Saímos da sala e eu fiquei em paz.

Saber que João não se sentia mal toda vez que eu dizia seu nome na chamada fez bem para mim.
No final do ano João saiu da escola. Entrou no ensino médio. Espero que na outra escola, seu espaço seja tão bonito como o que ele conquistou na quinta escola. Ele merece!


Terminei de falar do meu anjo trans e lembrei de algo que uma pessoa conhecida me contou. Aconteceu com essa pessoa.  Vou chamar de Meu anjo gay. O nome fictício: Antônio, nome do meu avô. Vou relatar como se tivesse acontecido na minha turma, comigo. Mas não foi.

Bem, Antônio estava no 9º ano (ou 8ª série). Nessa época era um menino que se assumia como gay. E gay com forma de falar, andar e se comportar que não eram percebidos como 'masculinos'. E, como vários autores colocam, em alguns espaços, se o menino não apresenta um conjunto de comportamentos, percebidos como 'comportamentos de homem', ele também não é percebido como 'homem de verdade'.

Antônio se dava razoavelmente bem com a turma. Era uma turma calma, e tinha alguns casais (alunos e alunas que namoravam e eram colegas de turma).

Nesse contexto, Antônio era visto por mim como um bom aluno. Participava das aulas, fazia as atividades, questionava. Não tinha problema com nenhum professor ou professora. Todos sabiam da sua orientação sexual, mas não se preocupavam com isso. Se ele fazia tudo, estudava, o resto não era da conta de ninguém. 

Então chegou na escola um professor novo. Daqueles bem 'sem noção'. Professor de Religião. 
Nas primeiras semanas de aula esse professor conseguiu arranjar confusão com as turmas dos menores (6º e 7º anos). A confusão aconteceu porque o dito professor disse em sala que para ele "dois homens ou duas mulheres juntos/as não eram uma família. Família só existe quando tem um homem e uma mulher." Lógico que ia dar problema (mas ainda não foi com Antônio). Na escola existiam alunos e alunas que tinham dois pais/duas mães. As crianças revoltadas foram falar com a coordenação. Pais e mães foram reclamar na coordenação. O professor foi chamado, conversaram, e ele não falou mais de família. 

Mas pelo visto não aprendeu a lição. E começou a 'perseguir' Antônio. No início as coisas eram mais sutis. Antônio respondia, e as coisas iam ficando esquisitas. Quando a turma me contou que o professor de Religião 'pega muito no pé de Antônio', entendi que a homofobia do mesmo estava 'inquieta'. Como não conseguiu fazer o que queria contra as famílias, usava qualquer coisa que Antônio fizesse como motivo de repreensão. Só que ele não tinha apoio da turma. A turma apoiava Antônio. 

Até que um dia, eu estava dando aula no outro 9º ano, quando alguns meninos, colegas de Antônio chegaram revoltados na porta da sala que eu estava. Segundo eles o professor de Religião 'humilhou Antônio', 'disse coisas para ele que não se diz para ninguém'. Estavam com muita raiva das atitudes do professor. Eu perguntei a eles onde estava Antônio. Me me disseram que Antônio tinha ido para a sala da direção reclamar. Disse então aos meninos que se eles acharam a atitude do professor errada, que fossem apoiar Antônio. Que dissessem para a direção tudo que estava acontecendo. "Vão ficar do lado de Antônio, não deixem ele só em uma hora dessas. Ele precisa do apoio dos amigos.". Então os meninos saíram correndo para a sala da direção.

Embora o que estivesse acontecendo com Antônio fosse algo triste, meu coração estava feliz. Feliz por ver que os colegas não cederam ao discurso homofóbico. Que sabiam distinguir e se indignar com as injustiças. Bons meninos. Meninos que não temiam serem confundidos com gays por apoiarem o justo. Por não compactuarem com a maldade da homofobia.
Esses meninos não sabem como fico feliz quando atitudes de recusa ao preconceito aparecem. Como diz Padre Júlio Lancelotti: "Se nesse mundo excludente você não tiver uma dose de rebeldia, é porque se adaptou a esse modelo". Meus meninos recusaram aceitar a agressão a um colega apenas por ele ser gay. E foram ajudar o colega. Dar apoio. Sem receio de serem tachados de gays ou qualquer outra coisa. Meninos lindos da tia!

Quando passei na porta da sala da direção vi a turma em peso ao lado de Antônio, que estava sentado em frente a mesa da diretora. A pressão sobre ela deveria ser muito forte. Porque os meninos estavam gesticulando e falando muito. A revolta era grande. 

Não acompanhei o resultado da reclamação nesse dia, porque tive que ir embora. Mas no dia seguinte, assim que vi Antônio (na porta da escola, quando estava entrando) perguntei se o problema com o professor de Religião tinha sido resolvido. A resposta veio junto com um sorriso de pura felicidade; "Resolveu sim, professora!" Perguntei então se a solução que a diretora deu deixou ele satisfeito. A resposta veio com outro sorriso: "Muito satisfeito!"

Nem imagino o que aconteceu, mas acredito que o professor deve ter se desculpado. Muito a contragosto. 

O dito professor teve sorte, porque se eu fosse mãe de Antônio, esse senhor receberia um processo. 
Mas, acredito que para Antônio, a solução da direção foi melhor. E acho que o importante é que ele, o ofendido, tenha ficado satisfeito.

Meu anjo gay pode ter sido bem maltratado pelo professor, mas o apoio que recebeu das/os colegas foi bem bonito. Ele teve certeza nesse momento que não estaria só. Que sua turma estava ao seu lado. Talvez isso, seja mais importante que qualquer coisa.